Opinião
O consumidor digital e o papel da inovação na indústria de gás natural
Se os desafios do gás como combustível, parceiro preferencial das renováveis, são grandes no contexto mundial, no Brasil eles são ainda maiores.
Os cenários econômicos globais no horizonte de 2050 de modo geral preveem maior consumo de energia devido ao aumento significativo da população mundial, ao crescimento econômico e ao aumento real de renda. Aliado a isso, a previsão é de maior urbanização, com cerca de três quartos da população mundial vivendo em cidades, e de maior eletrificação. O cenário do planejamento energético brasileiro não é muito diferente nesse aspecto. As premissas utilizadas no PNE 2050 estimam que o Brasil deverá acrescentar cerca de 30 milhões de habitantes, principalmente em cidades médias, com a urbanização chegando a mais de 90% da população brasileira. Dentro dessa perspectiva, as cidades terão um papel cada vez mais importante e o consumidor tende a ter papel mais ativo e determinante para o setor de energia. Mas o elemento fundamental para mudar o papel da demanda na indústria de energia é a inovação e a tecnologia.
As recentes – ou nem tão recentes – inovações tecnológicas em energia ocorreram principalmente no lado da oferta e promoveram mudanças importantes na indústria. Na indústria de petróleo e gás, as técnicas de perfuração horizontal, faturamento hidráulico e perfuração em águas profundas levaram as empresas à fronteira da tecnologia – como é o caso do pré-sal, no Brasil, ou da revolução do shale, nos EUA. No setor elétrico, novas tecnologias de geração ganharam espaço e as fontes renováveis devem continuar sua trajetória de crescimento em praticamente todo o mundo, mostrando uma tendência de priorização de tecnologias menos intensivas em carbono. Tais mudanças foram dramáticas e ocorreram em um curto espaço de tempo.
Com a perspectiva de aumento da eletrificação, há um enorme desafio colocado pela intermitência das renováveis, e a segurança do suprimento precisará ser alcançada através de outras fontes, principalmente no curto prazo. Em um contexto de preocupação com redução de emissões, o gás natural representa uma escolha por um combustível fóssil mais limpo e competitivo, possibilitando uma transição sustentável para um mix energético menos intensivo em carbono. Ou seja, o gás natural parece ser um bom parceiro para as renováveis na geração de energia elétrica. Novas fronteiras de produção de gás, novas tecnologias para redução de custos e novos projetos de GNL no mundo poderão trazer mais dinamismo e a necessária flexibilidade para o gás natural nessa parceria.
Mas o gás natural ainda precisará superar importantes obstáculos. O primeiro deles está relacionado à sua competitividade frente a outras fontes. Questões geopolíticas e o fraco desempenho da economia em alguns países podem favorecer a busca por fontes disponíveis internamente em cada país e mais baratas – o que inclui o carvão. De modo geral, a preocupação com questões climáticas é diferente entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Enquanto os desenvolvidos – principalmente na Europa – discutem a implementação de políticas de clima e mitigação de emissões, os países em desenvolvimento estão preocupados em definir uma política energética que possa viabilizar o seu crescimento – o que pode privilegiar fontes mais baratas e muitas vezes mais poluentes. Com isso, o mix energético dos países em desenvolvimento provavelmente será diferente do mix dos países desenvolvidos.
Por outro lado, o acesso a novas fronteiras de produção vem tornando os projetos cada vez mais complexos, resultando em custos mais altos na indústria de petróleo e gás. É importante que o setor seja capaz de reverter essa tendência, harmonizando custos e padrões na indústria. A palavra de ordem é descomplicar. Nesse contexto, o desenvolvimento e a aplicação de novas tecnologias que permitam simplificar processos e reduzir os custos de produção e processamento do gás e podem favorecer a competitividade do gás natural.
Vale destacar que, se os desafios do gás como combustível, parceiro preferencial das renováveis, são grandes no contexto mundial, no Brasil eles são ainda maiores. Do lado da demanda, enfrentamos os mesmo desafios de flexibilidade no mercado de gás, em função principalmente das características do nosso setor elétrico. Além disso, nossa oferta hoje é principalmente de gás associado ao petróleo, cuja produção é direcionada principalmente pela necessidade de produção de petróleo – portanto com pouca flexibilidade.
Some-se a isso as incertezas no cenário macroeconômico e associadas à politica energética, planejamento e regulação do setor – além da estrutura do mercado no país. Apesar da perspectiva de desinvestimento da Petrobras de ativos no setor de gás natural, a presença da empresa ainda é dominante no setor – em particular na limitada infraestrutura de transporte e escoamento. Ainda assim, nosso planejamento prevê que a participação relativa do gás natural em nosso mix energético aumentará de cerca de 7% para 11% em 2050 – isso considerando que a demanda por energia aumente mais de duas vezes. Para que esse cenário se torne realidade, precisamos criar condições para ampliar a oferta, inclusive em terra, e buscar desenvolver novos mercados.
Voltando ao cenário global, não parece surpreender, portanto, que diversas empresas de petróleo e gás tenham recentemente anunciado investimentos em tecnologias de baixo carbono. Empresas como Total, Shell e Statoil passaram a incluir em seus orçamentos de pesquisa e desenvolvimento recursos que serão direcionados a tecnologias mais limpas, incluindo biocombustíveis e renováveis. Algumas chegaram a anunciar metas de participação de renováveis em seus portfolios, sinalizando uma tendência de diversificação e uma perspectiva de desenvolvimento de projetos “híbridos” – combinando gás e renováveis, por exemplo.
Claramente, o balanceamento dos dois portfolios – gás natural e novas energias – com características tão diversas traz desafios e oportunidades. Primeiramente, porque tratam-se de projetos com escalas muito diferentes. Os projetos da indústria de petróleo e gás costumam ser de grande escala, e demandam vultosos investimentos. Já os projetos de renováveis em geral apresentam escala bem menor, em particular quando se trata de geração distribuída. Da mesma forma, enquanto os produtores de gás acessam, de modo geral, grandes mercados, em muitos casos os projetos de renováveis têm interação direta com consumidores individuais menores. Tipicamente, as grandes empresas de E&P não costumam interagir com esses consumidores, por atuarem no mercado global de petróleo. São mercados e modelos de negócios muito diferentes.
A boa notícia é que, diferentemente do petróleo, o setor de gás sempre teve como preocupação a garantia de mercados para os seus produtos. Como o gás ganhou crescente importância no portfólio de upstream das empresas do setor, de certa forma essa cultura voltada para a construção do mercado consumidor já vem sendo internalizada pelas empresas. Da mesma forma, se o modelo que se mostrar comercialmente viável for o de integração de gás e renováveis para gerenciamento da intermitência e comercialização da energia, levam vantagem as empresas que tiverem expertise em comercialização. Ou, ainda, a experiência em projetos offshore do setor de petróleo e gás também pode ser importante para projetos de geração eólica offshore, por exemplo. Em outras palavras, há importantes sinergias de conhecimento a serem trocadas. O desafio é adaptar a lógica das empresas produtoras de gás e petróleo para acomodar as especificidades das novas energias, mas sem perder a conexão com o portfólio mais amplo da empresa.
Mas o maior desafio para a indústria de gás natural estará do lado da demanda. A nova onda de inovação em energia vai ocorrer do lado da demanda e tem o potencial de provocar uma grande ruptura na maneira como a energia é entregue aos consumidores. A redução de preço de painéis fotovoltaicos e outras tecnologias para geração distribuída, a viabilização de veículos elétricos e, principalmente, o desenvolvimento de tecnologias de armazenamento têm um enorme potencial de promover essa revolução descentralizada, que parte do consumidor. Com os consumidores cada vez mais conectados e novos modelos de negócios, cada vez mais as decisões irão migrar para o consumidor e a habilidade de lidar com esse consumidor mais ativo será crucial para a sobrevivência nesse novo mundo.
A adoção dessas tecnologias em escala comercial ainda enfrenta desafios e, principalmente, enorme ceticismo. Muitos acreditam que elas só começarão a ser adotadas em escala preocupante para o status quo daqui a alguns anos, e que haverá tempo para as empresas se adaptarem. A maior parte da inovação do setor de energia é lenta, sim, mas digitalização está em toda parte, afetando diversas indústrias, e certamente encontrará o caminho para entrar no setor de gás. A mentalidade para mudança está aí, e está no consumidor. Apesar de sua grande e comprovada capacidade de produzir inovações do lado da oferta, a indústria de petróleo e gás ainda investe relativamente pouco em tecnologia da informação em comparação com outras indústrias mais próximas do consumidor final.
Para o futuro, as empresas de energia, em todos os elos da cadeia, precisarão definir uma estratégia para lidar com esse novo consumidor. Nesse processo, pode fazer sentido procurar parceiros que tenham competências complementares, e que tragam uma visão diferente do negócio e do consumidor. Com ou sem novos parceiros, no entanto, será preciso adquirir novos talentos e capacidades, provavelmente buscando profissionais de fora da empresa ou mesmo de outros setores. Para isso, deverá haver uma mudança cultural importante dentro das empresas. É hora de esquecer o business as usual.
Em resumo, o setor de gás já conhece os desafios do lado da oferta, já sabe que haverá restrições ambientais, que haverá competição por custos mais baixos e com as renováveis, e já vem superando importantes desafios tecnológicos. No entanto, a inovação no setor de gás ainda não está voltada para o consumidor, e a indústria ainda não tem um entendimento amplo dos desafios que virão das inovações tecnológicas pelo lado da demanda. O que mudará o perfil da indústria será o consumidor, através da tecnologia, e as empresas terão que se adaptar. A indústria de energia precisa repensar seu modelo de negócios, se sofisticar, passar de provedor de commodities para provedor de serviços. Como já é sabido há mais de um século, não é o mais forte nem o mais inteligente que sobrevive em um ambiente de mudanças, mas o que melhor se adapta às mudanças.
1 – World Economic Outlook, 2016. International Energy Agency.
2 – Segundo projeções da BP, o volume de negócios de GNL deve superar o volume de negócios de gás por gasodutos nos próximos 20 anos.
3 – Ditchley report, 2015. Disponível em http://www.ditchley.co.uk/conferences/past-programme/2010-2019/2015/climate-and-energy-risk
4 – Estudo sobre demanda, PNE 2050, EPE 2014.
5 – Ver “Total aims to be 20% low-carbon by 2035”: Disponível em https://www.ft.com/content/04985ba4-21c8-11e6-aa98-db1e01fabc0c.