Opinião
E a Eletrobras, hein?
O que está em jogo não é o destino de uma corporação estatal e sim da reforma profunda e sempre adiada do Estado-Nacional brasileiro, tornando-o contemporâneo
O sociólogo e cientista político Fernando Henrique Cardoso acaba de publicar um novo livro: Crise e Reinvenção da Política no Brasil. Fruto de entrevistas com Sergio Fausto e Miguel Darcy de Oliveira, são reflexões na primeira pessoa sobre três temas, como resumiu Roberto Pompeu de Toledo em artigo na Veja: a reinterpretação do moderno
e do contemporâneo, como conceitos; a disfuncionalidade entre o atraso dos sistemas políticos e os avanços da sociedade; e o dilema leninista do “O que fazer?”, um sistema de equações sem solução política pois o número de incógnitas é maior do que o de equações...
É menos ambicioso do que foi o ensaio de interpretação sobre dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito em parceria com Enzo Faletto nos efervescentes anos 1960. Porém, da minha estreita janela de observador, remete a outra leitura instigante, que são os ensaios de Fernando Henrique na coletânea Pensadores que inventaram
o Brasil, de 2013, com retratos 3x4 das obras de Joaquim Nabuco a Raimundo Faoro, passando por Euclides da Cunha, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Antonio Candido, Florestan Fernandes e Celso Furtado, autores que se dedicaram a explicar a formação do Brasil.
Crise e Reinvenção pode ser lido como um novo capítulo de Pensadores que inventaram o Brasil. Assim como economistas vivos são reféns das ideias de economistas mortos (Keynes), o debate político contemporâneo traz no seu inconsciente evidências que comprovam que a história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como
farsa (Marx).
O que essa introdução nos traz como conteúdo para a Eletrobras do título deste artigo? A provocação sobre as diferenças entre os conceitos de contemporâneo e de moderno, resultante da disruptura (palavra da moda) dos anos 1990.
A Eletrobras, símbolo de empresa sob controle de um Estado-Nacional, foi moderna quando os “fluxos de capital eram comparativamente pequenos e menos voláteis”, “as empresas, mesmo as multinacionais, operavam dentro das fronteiras dos Estados nacionais (FHC, 2018)” e o avanço tecnológico, que se acelera no pós-guerra, ainda não havia atingido a velocidade que está desconstruindo produtos e serviços, e, principalmente, modelos de negócio e de governança de organizações.
Não somente no segundo setor (empresas), mas igualmente no terceiro (organizações sem fins lucrativos) e no primeiríssimo setor, o Estado e sua organização institucional. O moderno transmitia conforto, previsibilidade e o encanto de que o futuro poderia ser planejado. O contemporâneo nos traz ambiguidade, dada a certeza de que daqui
para frente tudo será diferente..., assumindo que as transformações digitais se tornaram um fim em si mesmas.
A Eletrobras moderna tornou-se disfuncional no contexto contemporâneo. Contrariamente à teoria da dependência dos anos 1960, o Estado perdeu o bonde da história: “da visão dominante... de que o Estado deveria defender a nação das arremetidas do imperialismo e proteger os pobres da superexploração da empresa privada”, o aparelho de Estado identificou-se com “as corporações, os privilégios, a distribuição regressiva da carga tributária, o crédito subsidiado às empresas amigas do rei (FHC, 2018)”, tornando-se um custo “gorduroso” para a sociedade que o sustenta.
Com o agravante de que seu papel, insubstituível, de provedor de políticas públicas, é capturado por agendas ditadas pelo “estamento burocrático, patrimonialista na sua natureza e nos objetivos permanentes” e que “comanda o ramo civil e militar da administração ... com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira” na intermediação de interesses privados e públicos (e vice-versa), resumindo as palavras de Raimundo Faoro em Os Donos do Poder, a Viagem Redonda: Do Patrimonialismo ao Estamento. Nada mais contemporâneo do que a releitura de Faoro, à luz da história contemporânea.
Acompanhar e decodificar o imbróglio da privatização, digo, da pulverização do capital da Eletrobras, tal como relatado diariamente pela imprensa, sem levar em conta a complexidade contemporânea, conduz a um sistema de equações sem solução.
O que está em jogo não é o destino de uma corporação estatal e sim da reforma profunda e sempre adiada do Estado-Nacional brasileiro, tornando-o contemporâneo.
Eduardo José Bernini, é mestre em políticas públicas pela FGV-SP e MBA em Governança Corporativa