Opinião
Fusão Eneva/AES Tietê: uma proposta para dar o que falar
Argumentos existem para ambos os lados, dentro de um tema que não havia sido provocado até a carta assinada pela AES Holdings
Em meio à enxurrada de notícias envolvendo a Covid-19 e seus efeitos nas mais variadas frentes, uma discussão acerca da proposta de incorporação apresentada pela Eneva S.A. à AES Tietê Energia S.A. concentrou a atenção de grande parte do mercado.
A discussão, que em uma primeira análise deriva apenas do posicionamento de uma das partes envolvidas acerca do interesse — ou falta dele, poderá representar um novo marco acerca da extensão do direito de voto aos detentores de ações preferenciais de companhias que contemplam esse direito em seus estatutos.
Contextualizando a discussão, no último 1º de março a Eneva apresentou à AES Tietê uma proposta para combinação de negócios, via incorporação, mediante permuta de ativos (recebimento de ações da Eneva em troca da participação no capital social da AES Tietê) e pagamento de torna em espécie, com incremento de prêmio, fixado em 13,3% sobre o preço de fechamento das ações da AES Tietê observado no pregão anterior ao envio da proposta e superior à máxima histórica das 52 semanas anteriores.
A proposta foi submetida ao crivo do Conselho de Administração da AES Tietê, que a rejeitou sob a alegação de que, entre outras, a combinação de negócios resultaria em um desvio em seu posicionamento estratégico, que concentra sua produção em matrizes energéticas renováveis.
A discussão de fato surgiu a partir da decisão do Conselho de Administração da AES Tietê, cuja competência seria da assembleia geral de acionistas, onde referido órgão rejeita a proposta feita pela Eneva.
A proponente Eneva, bem como o BNDESPAR (acionista relevante da AES Tietê, detendo a maioria das ações preferenciais e 28% do capital social total, contra 24% da AES Holdings Corp., controladora da AES Tietê), passaram a divulgar manifestações acerca da necessidade de submeter a proposta ao crivo da assembleia geral, inclusive com a participação dos acionistas preferencialistas, conforme prevê o Regulamento da B3 para as companhias abertas Nível 2 de governança corporativa.
Para eles, o argumento está pautado diretamente no disposto nos dispositivos legais e estatutários que regulam a governança corporativa da AES Tietê. Nesse sentido, a leitura do artigo 17 da Lei das Sociedades por Ações, combinada com a do item 4.1, (vi) do Regulamento de Listagem do Nível 2 da B3, refletida no artigo 5º, parágrafo décimo primeiro do Estatuto Social da AES Titê, deixa clara a necessidade de participação dos acionistas preferencialistas em deliberações sobre transações como a proposta pela Eneva.
Na prática, o BNDES, em conjunto com outros acionistas preferencialistas, minoritários no capital social da AES Tietê, poderiam aprovar a transação, sem que a AES Holdings pudesse exercer o controle enquanto acionista detentor da maioria das ações ordinárias (quase 62% do total de ações ordinárias).
Foi exatamente esse o ponto que chamou a atenção da AES Holdings e a fez se manifestar no último dia 20, no sentido de rejeitar qualquer decisão que fosse proferida sem a sua concordância, na qualidade de detentora do controle por deter a maioria das ações ordinárias de emissão da companhia.
Para sintetizar a discussão, a AES Holdings, em sua manifestação, contesta os preceitos contidos no Regulamento de Listagem do Nível 2 da B3, que possui respaldo na Lei das Sociedades por Ações, o qual foi recepcionado pelo Estatuto Social da AES Tietê, sob a alegação de que, muito embora reconheça o direito de acionistas preferencialistas, enfatiza que os acionistas ordinaristas não podem se submeter à eventual decisão suportada por uma maioria formada por votantes preferencialistas, os quais não têm os mesmos direitos e responsabilidades dos detentores de ações ordinárias.
Na visão da AES Holdings, a lei brasileira não respalda que acionistas detentores de ações preferenciais (que usualmente não possuem direito de voto) aprovem transações de tal magnitude – aí fazendo menção implícita ao disposto no artigo 17 da Lei das Sociedades por Ações, sem o consentimento dos acionistas detentores de ações ordinárias. Defende também que o referido item 4.1, (vi), do Regulamento de Listagem do Nível 2 da B3 jamais quis atribuir aos acionistas preferencialistas o direito de decidir sobre esse tipo de matéria e que, se assim fosse, acarretaria instabilidade política nas companhias abertas, inclusive com a possibilidade de realização de takeovers por acionistas preferencialistas.
Diante da manifestação da AES Holdings, a Eneva retirou, momentaneamente, a proposta para combinação de negócios, por conta de eventual embate acerca dos direitos de votos conferidos aos acionistas preferencialistas.
A discussão sobre o direito de voto restrito dos acionistas preferencialistas remonta ao ano 2000, quando foi editada a primeira versão do Regulamento de Listagem do Nível 2 de governança corporativa, na qual, em um ambiente de mercado no qual um acionista com, ao menos, 17% das ações de determinada companhia exercia seu controle.
O objetivo de conceder direito de voto aos detentores de ações preferenciais é dar possibilidade de estes acionistas discutirem e expressarem seu voto em questões de cunho patrimonial, de forma a possibilitar a proteção de seu investimento, contrariando a vontade de um controlador com participação não majoritária.
Entretanto, o conceito de controle evoluiu muito nos últimos anos, o que, para alguns, poderia diminuir a pertinência de atribuir aos acionistas preferencialistas direito de voto em determinadas matérias, em detrimento da decisão dos acionistas majoritários, os quais possuem responsabilidades consideravelmente maiores.
Diante da situação exposta pela AES Holdings, o mercado passou a se movimentar, indagando a B3 acerca do seu posicionamento sobre o tema. Recentemente, a B3 informou que está preparando uma manifestação para dirimir os questionamentos levantados e instruir as companhias listadas no Nível 2 a como endereçar futuras situações que envolvam o voto de acionistas preferencialistas.
Argumentos existem para ambos os lados, dentro de um tema que não havia sido provocado até a carta assinada pela AES Holdings. Certamente, a discussão será ampla e estaremos atentos aos possíveis impactos na governança de companhias.
Bruno Grecco é do escritório Melcheds - Mello e Rached Advogados