O elo perdido da transição energética

Opinião

O elo perdido da transição energética

O desafio do Armazenamento é cultural e regulatório, não tecnológico. É cultural quando enxerga o BESS apenas como uma caixa que guarda energia. E regulatório porque, sendo multifuncional, a tecnologia desafia a própria concepção da nossa regulação

Por Mariana Goudel

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

O setor de energia vive um paradoxo. Dispomos de tecnologia de ponta para o armazenamento de energia, soluções robustas e prontas para modernizar nossa matriz. O BESS (Battery Energy Storage Systems) é o verdadeiro coringa ou "canivete suíço" do setor elétrico. No entanto, o verdadeiro desafio do armazenamento não é tecnológico e sim cultural: o mercado, coletivamente, ainda não sabe como operar ou despachar esses ativos multifuncionais de forma eficiente.

O primeiro entrave cultural é enxergar o BESS apenas como uma caixa que guarda energia. A tecnologia vai muito além de simplesmente deslocar energia no tempo. Embora essa seja uma função importante, está longe de ser a única.

Um sistema BESS é um ativo dinâmico com múltiplas funcionalidades que podem servir ao sistema de formas distintas. Ele pode realizar a regulação de frequência (resposta primária, secundária etc.), estabilizando a rede ao injetar ou absorver potência instantaneamente; pode atuar na estabilização de tensão, de forma similar a um compensador síncrono; e pode, claro, fazer a arbitragem de energia, deslocando o uso de enrgia no tempo e otimizando custos financeiros.

Mais do que isso, o BESS, quando configurado em modo grid forming, ainda oferece funções críticas como o black start, reiniciando o sistema rapidamente após um blecaute.

Além disso,  permite adiar investimentos caros e demorados em novas linhas de transmissão ou distribuição, como visto no recente leilão na Argentina, focado para reforçar a confiabilidade do fornecimento de energia na região de Buenos Aires e evitar apagões.

Acima de tudo, o BESS é o principal impulsionador de fontes renováveis, como a Solar e a Eólica, essenciais para a transição energética, mas cujo crescimento já começa a esgotar o sistema atual sem o devido suporte.

O problema é que operar esse "canivete suíço" exige uma mentalidade que o mercado ainda está desenvolvendo. O operador do sistema está acostumado com a previsibilidade. Ele consegue prever, com certa margem, a geração solar ou eólica com base no clima e em históricos. As usinas térmicas, embora despacháveis, possuem tempos mínimos de operação.

A bateria, por outro lado, é altamente interativa. Ela pode ser acionada e injetar carga máxima na rede em cerca de segundos. No entanto, ela possui um "estado de carga" que precisa ser cuidadosamente gerenciado. Manter uma bateria constantemente em 100% de carga o tempo todo não é o ideal, pois isso acelera a degradação química, podendo reduzir a vida útil do ativo.

Aqui reside o conflito não só cultural, mas também operacional e de gestão de risco: como o operador pode ter previsibilidade e confiança de que poderá contar com aquele ativo se o ideal para a bateria é manter o estado de carga dentro dos limites operacionais que não exigem 100% de energia disponível o tempo todo?

Essa complexidade operacional revela o segundo grande desafio: o regulatório. O BESS é uma das primeiras tecnologias que desafia a própria concepção da nossa regulação. Por ser um multifuncional, ele não se enquadra perfeitamente; atua na geração, na transmissão e na distribuição, dependendo da sua conexão e contrato.

Devido a essa característica multifacetada, muitos países adotaram o que vemos como uma boa prática internacional: a criação de uma nova categoria, o "agente armazenador". Isso permite que o ativo seja remunerado por suas múltiplas funções.

No Brasil, contudo, uma mudança dessa magnitude é complexa e exigiria mudanças legais e regulatórias profundas, embora já um passo importante tenha sido dado pela MP 1.304/2024, ao reconhecer o Armazenamento como instrumento de flexibilidade operacional, sugerindo níveis de atuação para esses sistemas.

Enquanto essa definição não chega, ficamos presos a um modelo que gera distorções. No mercado livre, por exemplo, um agente que injeta energia na rede paga tarifas pelo uso da infraestrutura e, teoricamente, pode usá-la quando quiser. O resultado desse risco, que era previsível, é o curtailment (corte de geração), que hoje assombra o setor, chegando a 60% ou 70% em alguns meses em determinadas localidades e inviabilizando novos projetos renováveis.

O caminho para o futuro não exige reinventar a roda; outros países, como EUA, Reino Unido e Chile, já operam BESS com sucesso. Precisamos, sim, adaptar as soluções ao nosso mercado, integrando-as à regulação vigente, aos perfis de consumo e às estratégias operativas do ONS.

Temos um sistema interligado muito robusto, mas ele precisa ser aprimorado para os sistemas BESS.

Fundamentalmente, a solução deve ser locacional. O Brasil é muito grande e tem problemas locacionais distintos. O desafio de São Paulo pode ser o pico de carga às 20h, enquanto o do Nordeste é o curtailment de geração solar.

O ONS precisa entender como operar as baterias em cada localidade e definir estratégias diferenciadas para operar os sistemas de armazenamento, tirando o máximo proveito para cada situação enfrentada.

A tecnologia para viabilizar as renováveis, minimizar o uso de térmicas e modernizar a rede já existe. O BESS é o ativo que pode auxiliar em toda essa cadeia. Agora, nossa cultura e nossa regulação precisam correr para alcançá-la.

Outros Artigos