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O potencial gigante da energia geotérmica na Transição Energética
Estudos avançam em universidades brasileiras para aproveitamento em climatização e algumas agroindústrias já avaliam o uso em seus silos. O potencial para a indústria de O&G também é alvissareiro
O Brasil começa a estudar uma fonte de energia presente em todo o seu território e que, apesar dos múltiplos benefícios, vem sendo ainda ignorada. Diferentemente dos países onde a geotermia é usada para a geração de energia, no Brasil é possível capturar o calor da Terra para aplicações na climatização de edifícios ou em processos industriais, por exemplo. Outro grande potencial é sua aplicação em poços de petróleo depletados, capazes de gerar calor em ciclo fechado, servindo à indústria de O&G como mais uma alternativa de compensação ambiental.
É como se o planeta funcionasse como uma grande bateria que armazena energia renovável e firme, ajustando-se, portanto, à conjuntura marcada pela transição energética e por fontes de energia firmes, que deem segurança ao sistema elétrico.
Parque estadual da Serra de Caldas, entre as cidades goianas de Caldas Novas e Rio Quente, foi criado em 1970 e tem a maior estância e balneário hipertermal do mundo, com águas que brotam do chão a temperaturas que variam de 20° a 60°
De acordo com o Plano Nacional de Energia (PNE – 2050), citando dados de 2019, mais de 3 milhões de plantas em 54 países do mundo e 73 GW instalados para produção de calor se valiam da geotermia superficial, principalmente na China, Estados Unidos e Europa. O PNE destaca que essa fonte permite uma redução do consumo final de energia em mais de 60% para a produção de energia térmica e de 20% a 60% para resfriamento. Considerando-se os recentes picos de demanda enfrentados no Brasil em dias tórridos, por conta do uso de aparelhos de ar-condicionado, é possível avaliar facilmente as oportunidades existentes para aplicação dessa tecnologia no país.
Em regiões como a Islândia, as condições geológicas como vulcões, gêiseres, fontes termais ou locais de encontro de placas tectônicas favorecem a implantação de usinas geotérmicas que geram eletricidade. No Brasil, as características dos recursos geotérmicos não favorecem a geração de energia, mas permitem o aproveitamento da energia geotérmica localizada mais próxima da superfície para a climatização de edifícios e para a produção de calor para processos industriais, por exemplo. O resultado dessas aplicações é uma redução dos gastos com energia elétrica valendo-se de uma fonte renovável e firme.
Cristina Tsuha (foto), professora da Escola de Engenharia de São Carlos (Eesc) da Universidade de São Paulo (USP) (foto), vem atuando em pesquisas em duas frentes em que a eficácia do uso da energia geotérmica para a climatização será avaliada: um prédio experimental e um muro de contenção, ambos adaptados para o aproveitamento dessa fonte. Sistemas semelhantes vêm sendo utilizados com sucesso na Europa e nos Estados Unidos há duas décadas, mas ainda não se tem uma avaliação para sua aplicação nas condições de solo e clima do Brasil.
Na Escola Politécnica, no campus da USP em São Paulo, está em construção um prédio experimental do Centro de Inovação em Construção Sustentável, o Cics Living Lab (foto), que servirá de ambiente para testes da eficiência da troca de calor entre o subsolo e as estacas de fundação para a climatização do edifício. O sistema envolve a captação ou rejeição do calor do solo por meio das estacas que integram a fundação do edifício. As estacas permitem uma grande área de contato com o solo, facilitando a troca térmica, e, com a ajuda de tubos implantados em seu interior por onde circula um fluido, a energia geotérmica chegará ao edifício, onde uma bomba geotérmica se encarregará de realizar a troca de calor.
De acordo com os cálculos de especialistas envolvidos na pesquisa, a expectativa é que esse sistema proporcione redução de 40% a 60% dos gastos com energia nos edifícios, dependendo de condições como a condutividade do solo, por exemplo.
No campus de São Carlos, os testes envolverão o aproveitamento de energia geotérmica a partir de um muro de contenção, visando a climatização de uma creche dos filhos dos funcionários da universidade. Também nesse caso a expectativa é a utilização para proporcionar resfriamento. O método é simples. Implanta-se uma serpentina atrás do muro onde circula água e, por meio dela, se faz a troca de calor por meio das paredes enterradas. O uso de muros de contenção para a obtenção do calor do solo tem grande difusão na Europa, principalmente em estações de metrô, onde é aplicado para aquecimento.
Prédio experimental do Cics Living Lab, em construção no campus da USP, em São Paulo, servirá de ambiente para testes da eficiência da troca de calor entre o subsolo e as estacas de fundação para a climatização do edifício (Foto: Divulgação)
Para os testes realizados em São Carlos foi construído um muro de contenção ‘fake’ ao lado da creche, com profundidade de 4 metros. A meta é verificar a eficiência da troca de calor com o solo com o objetivo de refrigerar o ambiente da creche, exposta ao calor intenso da região.
Segundo a professora Cristina, algumas empresas têm procurado a universidade para verificar a possibilidade de utilizarem a energia geotérmica em seus processos. Entre os interessados, estão fabricantes de silos para o armazenamento de grãos, que querem verificar a viabilidade de utilização dessa fonte no processo de secagem. Nos silos, os grãos são armazenados a uma temperatura de 24°C. Para a secagem, contudo, devem ser submetidos a uma temperatura de 100°C. Atualmente, algumas empresas recorrem a fontes fósseis, como o GLP, nesse processo.
Ela cita como exemplo de aplicação da energia geotérmica o seu aproveitamento para o aquecimento de granjas de frangos na Austrália. Outra experiência é a utilização em uma fábrica de embalagens de remédios em Lyon, da França, região em que o inverno é rigoroso. A fábrica conta com poços de 70 metros de profundidade que permitem a climatização da área industrial e do escritório. Gasta-se, na empresa, somente 25% do valor despendido com o uso de sistemas convencionais de aquecimento.
Aproveitamento de poços depletados
A Agência Internacional de Energia (AIE) destaca que a indústria do petróleo e gás pode ter um papel preponderante no aproveitamento da energia geotérmica e vem respondendo por avanços tecnológicos nessa direção. Técnicas desenvolvidas pelas companhias petrolíferas a partir de maior compreensão do subsolo, que abrange a perfuração e fechamento de poços, previsão de fluxos de fluidos e gerenciamento de projetos de grande escala, podem contribuir para a redução de custos e permitir atingir recursos geotérmicos localizados mais profundamente.
Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) mostra que a energia geotérmica, uma fonte limpa, renovável, eficiente e de baixa emissão de carbono, representa uma alternativa promissora para que a indústria do petróleo no Brasil possa enfrentar o desafio de reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Segundo os pesquisadores, o abandono de um poço de petróleo e gás impõe desafios econômicos às companhias para o atendimento de requisitos das agências reguladoras. O aproveitamento para a obtenção de energia geotérmica poderia prolongar a vida econômica dos poços e reduzir os custos dos empreendimentos.
O estudo, batizado de “Reutilização sustentável de poços de petróleo depletados para geração de energia geotérmica no Nordeste do Brasil: potencial, desafios e benefícios”, tomou como base a Bacia Potiguar, onde existe grande quantidade de poços e significativo fluxo geotérmico.
Os pesquisadores realizaram simulações com o software System Advisor Model (SAM) para obter dados de geração de energia, fator de capacidade e custo nivelado de energia (LCOE) de dois cenários analisados. O estudo apontou que a região tem potencial para geração de energia geotérmica e comprovou que a profundidade do poço, em conjunto com a temperatura do recurso geotérmico, pode influenciar de forma significativa os resultados.
Os poços em terra mais profundos da Bacia Potiguar possuem temperaturas entre 60 °C e 100 °C, o que torna propício a implantação de uma usina Organic Rankine Cycle (ORC), que dispõe de uma binária de malha fechada e trocadores de calor de tubo duplo. Uma característica dessa usina é seu menor impacto ambiental, uma vez que a água do reservatório geotérmico não é retirada e o fluido usado para a troca de calor permanece em circuito fechado. A planta teria um custo de US$ 6,2 milhões e poderia dispor de uma capacidade de geração de 30 MW.
Fonte: UFPA
No primeiro cenário do estudo, os pesquisadores simularam o aproveitamento de um poço de 2.200 metros de profundidade com saída de água em superfície na temperatura de 80 °C. No segundo cenário, a profundidade do poço foi de 1.000 metros e a temperatura de saída da água, de 58 °C.
No cenário 1, a simulação com a planta geotérmica resultou em uma quantidade anual de energia de 261.330.704 kWh, com fator de capacidade de 99,4%. O custo nivelado de energia (LCOE) foi de 6,11 ¢/kWh. No cenário 2, a geração foi ligeiramente menor, de 61.293.056 kWh anuais, mantendo o fator de capacidade de 99,4%. O LCOE foi significativamente menor, de 5,87 ¢/kWh.
O estudo alinhou um conjunto de benefícios que a utilização dos recursos geotérmicos nos poços depletados pode proporcionar. Além da redução dos custos e do baixo impacto ambiental, representa uma oportunidade para aproveitamento de recursos existentes. Para o sistema elétrico do país, a energia geotérmica tem o beneficio de não sofrer influências climáticas, oferecendo uma energia firme e renovável, que pode ser utilizada na substituição de fontes fósseis.
Avanços tecnológicos e investimentos
Embora a energia geotérmica seja aproveitada há mais de 100 anos em várias regiões do planeta, essa fonte energética, vista como promissora, versátil e com um vasto potencial pela Agência Internacional de Energia (AIE), vem desempenhando um papel secundário na transição energética. A energia geotérmica responde por menos de 1% da demanda global de energia, de acordo com a agência, e seu uso está concentrado em alguns países com recursos de alta qualidade e facilmente acessíveis, incluindo Estados Unidos, Islândia, Indonésia, Turquia, Quênia e Itália.
Usina a energia geotérmica no deserto do Arizona alimenta data centers do Google (Foto: Google)
Avanços tecnológicos permitiram acesso a recursos antes inexplorados, ao mesmo tempo em que a redução de custo e novos modelos de financiamento contribuíram para que houvesse algum progresso no aproveitamento dessa fonte. No entanto, uma série de desafios precisa ser abordada, incluindo riscos de desenvolvimento de projetos, processos de licenciamento e permissão, preocupações ambientais e aceitação social.
Dados da Agência Internacional para as Energias Renováveis (Irena) mostram que a energia geotérmica esteve, no período de 2013 a 2022, entre as fontes de energia limpa que receberam menos investimentos. Em um cenário em que a geração fotovoltaica e a geração eólica desfrutaram da quase hegemonia na busca pela descarbonização e pela transição energética, tendo recebido, respectivamente, 46% e 32% dos investimentos no período, a energia geotérmica, juntamente com a geração hidráulica, biomassa e biocombustíveis, foram alvo de apenas 7% dos aportes. E, nessa fatia, a geração hidráulica contou com a maior parte dos recursos desembolsados pelos investidores.
A Irena acredita que serão necessários mais investimentos para que a energia geotérmica e as fontes limpas com participação minoritária na expansão da energia renovável ganhem competividade e assumam um papel mais importante na transição energética.
Para a AIE, contudo, avanços na tecnologia, que envolvem perfuração horizontal e fraturamento hidráulico aprimorados pela atividade petrolífera na América do Norte, proporcionam novos horizontes para esta fonte.
Usina elétrica geotérmica de Krafla, na Islândia, país que explora energia geotérmica desde 1907. Hoje, tem 5 usinas geotérmicas em funcionamento (Crédito: Ásgeir Eggertsson)
O potencial da utilização da energia geotérmica também é significativo quando se trata de climatização de edifícios, oferta de calor nas indústrias e aquecimento urbano. O potencial geotérmico global de aquíferos sedimentares em profundidades de até 3 km e temperaturas maiores que 90°C é estimado em cerca de 320 TW. Com essas condições, a energia geotérmica torna-se competitiva em relação a combustíveis fósseis no aquecimento urbano, contribuindo para a descarbonização desse segmento.
A AIE destaca que governos, empresas de petróleo e gás e concessionárias de serviços públicos são os agentes que demonstram maior apetite por investimentos em energia geotérmica. Mais recentemente, empresas de tecnologia, principalmente as que se dedicam ao desenvolvimento da inteligência artificial, passaram a considerar a energia geotérmica como alternativa possível para atender a elevada demanda de seus data centers. Caso os avanços resultem em reduções de custos significativas, os investimentos totais em energia geotérmica podem atingir US$ 1 trilhão, cumulativamente, até 2035, e US$ 2,5 trilhões até 2050.
Fonte: IEA
Fonte: IEA
Potencial na América Latina
A norueguesa Rystad Energy realizou um mapeamento sobre o desenvolvimento de projetos que exploram a energia geotérmica na América e do potencial desta alternativa para a produção de energia limpa, descarbonização de processos industriais e reforço na segurança energética.
Segundo o levantamento, uma ínfima parte do potencial geotérmico foi aproveitada até o momento pelos países latino-americanos. Os projetos de geração geotérmica somam 2 GW, para um potencial estimado em 33 GW.
A expectativa é que essa fonte de energia ganhe maior atenção no curto prazo. Os investimentos em projetos deverão saltar de US$ 570 milhões verificados em 2024 para US$ 1,3 bilhão a serem executados em 2027, de acordo com as previsões da consultoria.
Segundo o levantamento, um dos maiores desafios para o maior aproveitamento dessa fonte de energia são as dificuldades de acesso a locais em que se encontra um maior potencial geotérmico.
Outra constatação do levantamento é que as metas governamentais têm sido os condutores do crescimento da geração de energia a partir do calor emanado do solo. O crescimento da capacidade geotérmica previsto até 2030 é quase exclusivamente impulsionado por iniciativas dos governos.
A maior parte do aproveitamento dessa fonte já viabilizado ocorre no México, Costa Rica e El Salvador, que respondem, juntos, por cerca de 75% da capacidade existente. O Brasil não é citado pelo levantamento.