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Os vários caminhos do etanol na mobilidade

A emergência climática está constatando a sustentabilidade dos biocombustíveis. Alguns ainda dependem de incentivos para competir com os fósseis. O etanol, ao que tudo indica, já chegou lá

Por Eugênio Melloni

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Oferta garantida: produção do etanol de cana ocorre entre abril e dezembro, enquanto o de milho é produzido o ano inteiro (Foto: Tadeu Fessel/Unica)

Cinquenta anos depois que o Governo lançou o Proálcool e quase 40 passados desde que o programa sucumbiu vitimado por uma crise no abastecimento do etanol, a lembrança de um programa que não deu certo começa a ceder lugar para um panorama mais promissor. Nesse período, o país se tornou autossuficiente e até exportador de petróleo, o carro movido a álcool hidratado perdeu espaço para os motores flex e os novos elétricos e híbridos ganharam as ruas, sinalizando um futuro de menos emissões de GEE nos transportes.

A Brasil Energia foi ouvir como se mobiliza o setor de etanol frente aos novos tempos.

“Entendemos que estamos entrando em um mundo em que vão conviver diversas soluções”, disse Luciano Rodrigues (foto), diretor de Inteligência Setorial da União da Indústria da Cana de Açúcar e Bioenergia (Unica), entidade que congrega produtores de açúcar, etanol e bioeletricidade. “Falar de veículo elétrico compartilhado no centro da capital paulista faz sentido. Mas na rodovia Belém-Brasília não”.

A entidade considera que o país contará com múltiplas soluções, entre veículos elétricos plug-in, híbridos, flex, híbridos flex, movidos a célula combustível, entre outros, que se adaptarão a diferentes regiões e usos, considerando-se fatores econômicos e relacionados com a infraestrutura, por exemplo.

Roberto Braun (foto), diretor de Comunicação & ESG da Toyota do Brasil, concorda. “Não há uma preferência por uma tecnologia ou por outra, por um combustível ou outro. Eu acho que nós temos que trabalhar naquilo que é viável para o país”, disse ele, citando o acordo de cooperação Mobilidade de Baixo Carbono para o Brasil (MBCB), do qual faz parte e que reúne empresas e entidades para promover a mobilidade de baixo carbono no setor de transportes. “Como um país com agricultura diversificada, o Brasil conta com diferentes insumos para a produção de biocombustíveis, o que nos permite escolher várias rotas tecnológicas para a descarbonização”.               

Mas ressalvou que o país conta com 50 anos de experiência com o etanol, 22 anos de experiência com a tecnologia flex e 6 anos de uso da tecnologia híbrida flex – fatores que diferenciam o Brasil em relação ao restante do planeta, quando se trata de transição energética no segmento de mobilidade.

Como especialistas, lembram que o etanol possui infraestrutura e logística bastante desenvolvida no país, que permite o suprimento em todas as regiões, vantagem que os veículos elétricos, por exemplo, não tem. Rodrigues destaca que há uma preocupação grande, quando se busca promover mudanças na mobilidade, em reduzir emissões. A partir de 2027, destacou, a métrica para contabilizar as emissões será o conceito do “berço ao túmulo”, que mede a pegada de carbono de todas as etapas da fabricação de componentes e veículos, do seu uso e do descarte. Para especialistas, esse conceito favorece os veículos híbridos a etanol.

Braun acrescentou que o etanol poderá contribuir para o desenvolvimento de outras rotas tecnológicas, como as células combustíveis a hidrogênio. “Se a gente pegar um veículo flex hoje rodando com etanol, o nível de emissão dele por quilômetro rodado está acima do patamar de um veículo elétrico da Europa e quase no mesmo patamar de um veículo elétrico no Brasil, se a gente considerar o conceito de berço ao túmulo”.

A tecnologia flex, com motores que consomem gasolina e etanol, representa atualmente mais de 90% das vendas de veículos de passageiros. O etanol representa entre 45% e 46% do combustível utilizado nos veículos leves, substituindo a gasolina. A Unica calcula que os veículos flex evitaram, de 2003, quando foram lançados, a dezembro de 2023 a emissão na atmosfera de cerca de 660 milhões de toneladas de CO2.

Carros flex representam 90% das vendas de veículos e evitaram a emissão de cerca de 660 milhões de t de CO2 desde que foram lançados, em 2003 (Foto: Divulgação)

De acordo com o estudo “Trajetórias tecnológicas mais eficientes para a descarbonização da mobilidade”, elaborado pela LCA Consultores e pela MTempo Capital a pedido do MBCB, o setor de transporte contribuiu com 13% do total das emissões de CO2 em 2018, ante uma média de 17% observada em países como Estados Unidos, China, União Europeia e Índia. A principal razão para isso, segundo o estudo, decorre do fato de a frota de veículos leves contar com grande participação da tecnologia flexfuel.

O etanol, contudo, ainda precisa superar a preferência dos usuários de carros flex pela gasolina, fruto ainda, segundo uns, da imagem deixada pela crise de abastecimento do etanol do fim dos anos 80 ou apenas de uma simples conta de preços.

As diferentes alíquotas tributárias nos estados da federação produzem também efeitos na competitividade do produto em regiões diferentes. O consumidor já assimilou que só vale abastecer de etanol quando seu preço for inferior a 70% do da gasolina, mas há quem explique isso de outra forma. Desenhado para rodar com os dois combustíveis, o motor flex desperdiça a eficiência maior da octanagem do etanol sobre a gasolina e isso faria grande diferença no resultado econômico. Por conta disso, atualmente, 90% do consumo de etanol hidratado ocorre em apenas seis Estados - São Paulo, Minas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná – além do Distrito Federal.

Rodrigues diz que a expansão da cultura canavieira e o crescimento da produção do etanol do milho têm contribuído para mudar esse panorama. No passado, a produção de cana era restrita a São Paulo, Triângulo Mineiro e parte do Paraná, mas hoje existe em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e outras regiões de Minas Gerais. Além disso, nos últimos cinco anos a produção de etanol do milho tem crescido aceleradamente no Centro-Oeste.

Usina de milho da FS em Lucas do Rio Verde (MT): produção de etanol de milho cresce aceleradamente no Centro-Oeste do país (Foto: Divulgação/FS)

Outro fator que contribuirá para ampliar a competitividade do etanol será a tarifa monofásica, que definirá uma alíquota única para o ICMS, em 2029. Atualmente, a alíquota do ICMS em São Paulo é de 12%, enquanto em outros estados chega a 30%.

O SAF e os pesados

Na busca por novos usos do etanol, os produtores olham com interesse os negócios com o SAF (Sustainable Aviation Fuel), como é conhecido o biocombustível que substituirá o QAV no transporte aéreo. A IATA - International Air Transport Association estima que o SAF poderia contribuir com cerca de 65% da necessidade de redução nas emissões de GEE para que o setor atinja o net zero em 2050.

Aprovada no ano passado, a Lei do Combustível do Futuro prevê a substituição, a partir de 2027, de 1% de querosene de aviação por SAF, em uma escala progressiva que termina em 10% de substituição em 2037. Já há um conjunto grande de plantas em estudos e projetadas, na esteira da demanda prevista no setor da aviação para sua descarbonização. E o SAF tem características idênticas ao QAV, com baixa emissão.

Há em testes seis rotas tecnológicas possíveis para a produção de SAF. A rota mais avançada, e que parte do óleo vegetal, esbarra, contudo, na oferta limitada dessa matéria prima para atender a demanda prevista.

Na sequência, a rota com maior potencial usa a tecnologia Alcohol-To-Jet (ATJ), com a qual são necessários 1,7 litros de etanol para a produção de 1 litro de SAF. A Unica tem recebido delegações de vários países interessados em entender como se dá essa via tecnológica e em abril próximo envia comitiva ao Japão.

Fabricante John Deere desenvolve trator com motor ciclo Otto movido a etanol (Foto: Divulgação/John Deere)

Já a aplicação do etanol em motores pesados é algo mais desafiador. “O nosso histórico é de veículos leves. Em relação aos pesados, há alguns testes de substituição do diesel por etanol, mas em fase embrionária e em condições muito especificas”, diz Rodrigues. É o caso das máquinas agrícolas movidas a diesel. A fabricante John Deere apresentou ao mercado no ano passado um trator com motor ciclo Otto movido a etanol, como alternativa ao diesel e os motores movidos a biometano.

No passado, a própria Unica chegou a realizar testes com o etanol em veículos pesados, bancando um projeto-piloto em São Paulo com 50 ônibus movidos a etanol. Os motores eram ciclo diesel e contavam com um aditivo que fazia o papel da vela e reproduzia o efeito de detonador. Conforme foi anunciado na época, o uso do etanol proporcionava redução de até 90% da emissão de material particulado lançado pelos motores a diesel. O projeto, contudo, não teve continuidade.

E o veículo 100% a etanol?

Para a Unica, essa possibilidade depende mais da estratégia comercial das montadoras do que dos produtores. A entidade considera que os problemas de abastecimento ocorridos no final da década de 80 do século passado, que comprometeram a demanda por veículos, já foram superados.

Desenvolvido nos anos 70 e 80, o motor a álcool foi o principal instrumento adotado pelo Governo brasileiro para fazer frente aos choques do petróleo de 1973 e 1979, quando o país era grande importador de petróleo. Em meados dos anos 80, a participação dos carros a álcool na frota brasileira havia superado a marca de 70%, de acordo com estimativas da época.

Mas o biocombustível desapareceu das bombas dos postos no final da década de 80, um problema atribuído ao fato de o setor sucroalcooleiro direcionar a cana para a produção de açúcar, cujas cotações no mercado internacional remuneravam o produtor melhor que o etanol no mercado nacional. A crise afetou a credibilidade do Proálcool, levando consumidores e montadoras a voltarem para os veículos a gasolina.

Etanolduto da Logum em São Paulo: infraestrutura e logística bastante desenvolvida no país permite o suprimento do etanol em todas as regiões (Foto: Divulgação/Logum)

De acordo com Rodrigues, os problemas de oferta do passado não se repetiriam hoje. A produção do etanol de cana ocorre entre abril e, em algumas praças, dezembro. E o etanol do milho é produzido o ano todo. Além disso, o diretor da Unica menciona os mecanismos de controle na entressafra, como a obrigatoriedade de estoques e os contratos antecipados.

Sites especializados na indústria automotiva tem dado espaço a rumores de que a Stellantis, dona das marcas Citroën, Fiat, Jeep e Peugeot, estaria se preparando para lançar um veículo movido exclusivamente a etanol. Procurada, a empresa se manifestou afirmando que “o caminho da companhia é investir em uma matriz multi energética. Inovamos na transição energética ao criar e lançar a tecnologia Bio-Hybrid, que associa a eletrificação ao motor flex. A redução da emissão de CO2 com o bio-hybrid pode se potencializar com o uso do etanol”.

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