Opinião
Caminhos para a Transição do Fóssil para o Renovável no Setor Energético
O biogás é uma fonte estratégica para a transição que o mundo precisa fazer, com a beleza de conseguir descarbonizar toda a cadeia produtiva
- Por Gabriel Kropsch e Tamar Roitman
A elevada participação de energias renováveis deixa o Brasil em posição favorável quando comparado com outros países no que se refere às emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa decorrentes da geração de energia. Segundo dados da EPE (2020), para produzir 1 MWh, as emissões do setor elétrico brasileiro correspondem a cerca de 1/3 das emissões dos países da União Europeia, 1/4 das americanas e 1/6 das chinesas, uma vez que as matrizes energéticas desses países têm alta proporção de fontes fósseis.
A ampliação da utilização de fontes renováveis tem provocado importantes transformações na produção e consumo de energia mundial, impactando desde a forma de comercialização no momento presente até os parâmetros que os planejadores precisam incluir nas suas projeções futuras, passando pela necessidade de reformas regulatórias.
A avaliação das oportunidades de descarbonização do setor energético deve levar em consideração tanto o potencial de emissão de gases de efeito estufa quanto as características, atributos e potencialidades de cada fonte na matriz brasileira.
A análise das opções de descarbonização da matriz energética passa pelo entendimento de que cada fonte de energia tem um potencial de contribuição para o aquecimento global. Esse potencial é calculado considerando as emissões de gases de efeito estufa contabilizadas ao logo de todo o ciclo do processo produtivo da energia, metodologia conhecida como Avaliação de Ciclo de Vida (ACV).
A substituição de combustíveis como diesel, carvão e gás natural pelo biogás ou biometano, seja na geração de eletricidade, nas indústrias ou nos transportes, representa enormes benefícios ambientais do ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa. Uma vez que é produzido a partir de resíduos orgânicos e que todo o gás carbônico emitido durante a queima já foi absorvido do ambiente no momento do crescimento da biomassa, o biometano pode ter pegada de carbono negativa, a depender da metodologia de contabilização.
No âmbito do RenovaBio, a política nacional de biocombustíveis, que utiliza a metodologia de ACV com o conceito conhecido como “do poço à roda”, o biometano é o biocombustível com a melhor nota de eficiência energética, reduzindo 96% das emissões de CO2 quando comparado ao diesel.
Segundo o Instituto Escolhas (2018), nenhuma fonte sozinha tem todas as características necessárias para uma ótima operação do sistema, ou é autossuficiente. O que torna imprescindível a complementariedade entre as fontes que compõem a matriz elétrica e energética. O maior desafio do fornecimento de energia de qualquer país é garantir o atendimento da demanda com qualidade, confiabilidade, sustentabilidade e da maneira mais barata possível.
Um conceito bastante importante nesse contexto de transição energética é conhecido como neutralidade tecnológica, que sugere que a competição entre todas as tecnologias seja feita em função dos serviços que elas são capazes de prover ao sistema ou ao consumidor.
Pensando nos objetivos da regulação do setor elétrico, bem como do mercado de combustíveis, a neutralidade tecnológica apenas é viabilizada com isonomia de condições de competição, ou seja, não pode haver incentivos ou subsídios que distorçam a competitividade.
Isso não significa dizer que não se pode fazer uso de incentivos, mas eles devem ser usados exatamente com o objetivo de acelerar a competitividade de fontes em estágio inicial de desenvolvimento e que possam representar um benefício à sociedade.
Para que a competição não fique apenas no preço, dado que se deve selecionar também pelo serviço provido, a regulação ainda precisa avançar para incorporar de forma mais assertiva os benefícios sistêmicos, econômicos, ambientais e sociais, e, em especial, a necessidade de descarbonização da matriz.
A descarbonização de qualquer setor da economia exige mudanças em toda a configuração já estabelecida e que foi construída por décadas, implicando desafios muito mais complexos do que a aplicação das inovações tecnológicas. São necessárias alterações em leis, regulamentos, modelos de negócios, formas de acesso a infraestrutura existente e até mesmo padrões de consumo.
O ambiente regulatório tem papel essencial na descarbonização do setor energético, e ele precisa ser ágil o suficiente para se adaptar aos avanços tecnológicos e conseguir orientar o mercado para o caminho almejado pelos diversos segmentos da sociedade.
A utilização do biogás não é recente, mas a tecnologia evoluiu de forma surpreendente na última década, tendo como foco a eficiência da produção de energia, seja ela elétrica, térmica ou combustível, bem como a melhora da competitividade. A Figura 1 mostra a evolução da produção de energia elétrica a partir do biogás, chegando a 379 usinas, que somam 373 MW de capacidade instalada.
Figura 1 – Evolução do número de plantas e capacidade instalada de geração de energia elétrica a partir de biogás
Já o biometano, obtido pela purificação do biogás e que tem composição equivalente à do gás natural fóssil, dependia de regulamentação por parte da ANP para a sua comercialização, o que ocorreu em 2015 e em 2017, com as resoluções que tratam da especificação de qualidade do biometano como combustível. Desse modo, o investimento em novas plantas vem sendo intensificado e as projeções são bastante animadoras. Um levantamento recente feito pela ABiogás sinaliza a intenção de construção de 25 novas plantas até 2030, chegando ao volume de 2,3 milhões de m³/dia, conforme mostra a Figura 2.
Figura 2 – Projeção de produção de biometano até 2030
A expansão da produção de biometano depende, em parte, de políticas públicas e aprimoramentos regulatórios, além de remoção de barreiras tributárias e não tributárias, na medida em que as características dessas plantas e dos seus modelos de negócios se diferenciam de padrões estabelecidos para os combustíveis já consolidados.
A outra parte que impulsiona tais investimentos vem pela demanda do mercado, em especial de empresas com metas de redução de emissões e com a visão de que é preciso fazer mudanças importantes nos processos para garantir uma produção sustentável.
As discussões a respeito da descarbonização da economia vêm ganhando um rumo cada vez mais sério, e a adoção prática dos critérios ESG (ambiental, social e de governança, na sigla em inglês) se torna exigência mínima em todos os setores. O Brasil é o país com as maiores oportunidades para entregar produtos com a menor pegada de carbono, e a preços mais competitivos. Temos uma matriz elétrica extremamente renovável, grande oferta de biocombustíveis e a possibilidade de ampliar produção agrícola preservando florestas. Tudo isso compõe o cenário para que a indústria brasileira seja inigualável com qualquer outro país do mundo.
O biogás é uma fonte estratégica para a transição que o mundo precisa fazer, com a beleza de conseguir descarbonizar toda a cadeia produtiva. Iniciando pela produção agrícola, aproveitando os resíduos e gerando biofertilizantes que voltam para processo e reduzem a necessidade de fertilizantes sintéticos, passando pela energia, indispensável em qualquer processo industrial, pelo combustível que abastece veículos, caminhões, tratores e equipamentos, e chegando até os insumos, uma vez que a molécula de metano renovável pode dar origem a diversas outras moléculas. Incorporar a sustentabilidade de fato no produto, e não apenas compensar emissões, é chave para que o Brasil lidere a transição e a transformação energética que queremos.
Gabriel Kropsch é Vice-Presidente da ABiogás desde 2013. Formado em Administração de Empresas pela PUC – RJ, obteve seu MBA pela UFRJ e cursou o Programa OPM pela Harvard Business School e a Formação para Conselheiros da FGV. Depois de trabalhar na Tramp Oil Brasil e TOBras Distribuidora (Terrana), Gabriel focou na área de bioenergia e gás e no momento atua nas empresas Sinergas, Aspro Serviços e Acesa Bioenergia como sócio e conselheiro.
Tamar Roitman é engenheira química, mestre em Planejamento Energético, e aluna de doutorado em Bioenergia. Atualmente, é Gerente Executiva da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás).