Opinião
O erro começa pelas tomadas
Quando uma sociedade aceita mansamente defeitos por mais óbvios e próximos que sejam, o tema extrapola o setor elétrico e outros benjamins virão
Convido o leitor a uma “viagem” começando a partir das nossas tomadas, mostrando que, apesar das vantagens naturais, típicos improvisos e “jeitinhos” conseguiram fazer um verdadeiro desastre no setor elétrico brasileiro. Como personagem metafórico, o nosso benjamim, esse multiplicador de tomadas que faz Benjamim Franklin se revirar no túmulo.
O Brasil fez uma mudança nas tomadas exigindo um padrão inédito. Adotamos conectores embutidos e até um terceiro pino para aterramento, que vai gerar o “pino coisa nenhuma”, pois a maioria das residências não tem a fiação necessária para essa função. Dada a pressa da reforma, até parece que estávamos perante uma epidemia de choques elétricos! Para o júbilo dos fabricantes e irritação dos consumidores, adotou-se um design incompatível com todos os modelos mundiais, e, de repente, nos vimos obrigados a comprar adaptadores para “darmos um jeitinho”.
Conceberam um padrão para 20 Amperes e 10 Amperes. Como a corrente é transferida pelo contato entre o metal da tomada e do plug de seu aparelho, a capacidade de transferência de energia depende das superfícies de contato. Por exemplo, a tomada de 20 Amperes tem 4,8 milímetros de diâmetro. A tomada de 10 Amperes tem 4 milímetros, apenas 20% mais fino do que a de 20 Amperes. Ora, se 10 necessita de 4 mm, 20 deveria necessitar de 8 mm! Ou, se 20 A necessita de 4,8 milímetros, 10 A precisaria de apenas 2,4! Pior! Se a espessura de 20 A está correta, poderia transportar 10 A, o que deixa evidente que bastaria o formato de 20 Amperes para atender à exigência de segurança. Lógica? Nenhuma! Apenas a alegria dos fabricantes.
Indo adiante, nos postes de distribuição, emaranhados de fios. Em qualquer ligação elétrica, mau contato ou dimensionamento malfeito gera perdas. Como se misturam cabos elétricos e de telecomunicações, até perdas por indução eletromagnética podem ocorrer. Portanto, não se trata apenas de estética e problemas da manutenção. Além de faltar luz por mais tempo, alguns kWh são perdidos. Mas, como nesses “novelos” pode haver o “gato” e a perda elétrica, a própria empresa sem fiscalização, pode exagerar o valor da “gataria”. Como são cobradas de quem paga a fatura, os “gatos” podem “comer” os kWh perdidos e a ineficiência fica escondida.
Nosso sistema de transmissão tem um papel integrador muito mais amplo que as redes de outros países, pois leva grandes quantidades de energia de uma região para outra, reorganizando o estoque dos reservatórios. Não há similar no mundo. Com essa função, imaginar-se-ia um sistema o mais homogêneo, compatível e monitorado possível, pois qualquer anomalia pode causar interrupções de grande porte.
Mas, surpresa! A nossa rede tem múltiplos donos. Várias subestações abrigam empresas com equipamentos, tecnologia e equipes desiguais! Vejam a semelhança da inconsistência - é como se fossem “benjamins” de alta tensão. Pior! As linhas antigas, que precisariam de modernização, têm tarifas até 10 vezes menores do que as novas. Tudo para conseguir uma pífia redução anulada por qualquer bandeira tarifária culpando São Pedro e o consumidor por estar esvaziando reservatório!
Enfim, chegamos às usinas. Encontramos 105 GW de hidrelétricas (62%), 37 GW de térmicas (22,1%), 4,6 GW de solares (2,7%), 20,6 GW de eólicas (12,2%) e 2 GW de nucleares (1%). Estranho que, com tanto sol e tanto vento encontremos um percentual tão baixo. Como referência, a Alemanha, que tem muito menos sol do que o Brasil, já tem quase 50 GW. Hoje, exageram na importância das eólicas, mas é preciso entender que estamos longe da Dinamarca, cujos ventos já suprem 70% do total consumido.
Esses 22% de térmicas, poluentes e caras, surgiram principalmente em dois momentos: No racionamento de 2001 e no laissez-faire do mercado livre que, viciado em preços baixos por 10 anos, não investiram em expansão. Confiando na ignorância dos consumidores, vive-se uma fantasia de que as térmicas preservam reservatórios. Na realidade, a parcela mais cara dessa “oferta benjamim” esvazia reservatórios pois, não sendo usada por conta do preço, adivinhem quem gera no lugar delas?
Para enfrentar a explosão de preços, abdicando de qualquer aumento de eficiência mencionado, a opção das autoridades foi a de impor mágicos descontos, um festival de “benjamins” na receita das hidráulicas antigas. Tal qual o adaptador de tomadas, uma nova contabilidade “deu um jeitinho” resultando numa queda de 70% no valor da Eletrobras e reduzindo a tarifa em 20% por alguns meses, sem importunar o setor privado.
Agora, nem adianta lamentar a sequela da Eletrobras, que definha perigosamente em direção a sua privatização. Trata-se de mostrar que o brasileiro sequer sabe que o regime que garantiu a redução de tarifas via amortização foi o de serviço pelo custo, adotado no Brasil até 1995. Se não tivesse proporcionado modicidade, a tarifa da época não seria a metade da atual em valor real. Mas, aqui, seguindo a moda da década, o sistema foi banido pela lei 8987/95 que implantou o “mercado”, onde o preço nada tem a ver com estágio de amortização.
Nesse “adaptador metafórico”, as empresas passam a ser meras “empreiteiras” de operação e manutenção (O&M), perdendo a iniciativa de investir, pois, qualquer despesa que não for classificada como tal, terá que ser autorizada pela Aneel. Por outro lado, com um orçamento voltado para seu “umbigo”, a usina também deixa de participar da vida da empresa, que, tendo uma inserção na sociedade, não se limita a gerar e transmitir energia. Mais prejuízo e mais acusações de “ineficiência”.
Usinas não precisam ser trocadas porque duram muito. Mas, para que a vida útil se estenda e ela fique como nova, as concessionárias têm que manter investimentos. No mundo, se a amortização insuficiente faz o lucro de uma empresa extrapolar, ou se geram recursos para construir novas usinas ou a tarifa é reduzida. Em sistemas de matriz semelhante, antigas hidrelétricas são “velhas senhoras”, mas não sofrem a “laqueadura” que a política adotada impôs.
Agora, um novo benjamim vai ser imposto. Vão capitalizar a Eletrobras. Um jeitinho de disfarçar sua privatização, coisa que nenhum país com matriz semelhante adota. A tarifa dobrou de valor real mesmo com o sacrifício da Eletrobras. Diagnóstico? Nenhum! Os “investimentos” privados também são adaptadores, pois a maioria é baseado em usinas compradas prontas, feitas em parceria com a Eletrobras ou nas térmicas que surgiram por conta dos efeitos dos benjamins.
Quando uma sociedade aceita mansamente defeitos por mais óbvios e próximos que sejam, o tema extrapola o setor elétrico e outros benjamins virão.
Roberto Pereira d´Araujo é Diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina)