
Opinião
Revisão Tarifária e o Mundo do Gás: Verdades, Mitos e Escolhas
Como a construção de um modelo tarifário que garanta eficiência, segurança jurídica e tarifas justas estimula o crescimento do Brasil

Coautora: Cristiane Ribeiro
Quando falamos de gás natural, estamos falando de energia, desenvolvimento e competitividade. E, nesse contexto, os gasodutos - esses caminhos invisíveis que cruzam o país - são fundamentais para garantir que o gás chegue a quem precisa, na quantidade certa e pelo preço justo. Por isso, entender como se calcula o valor da logística de transporte não é apenas um tema técnico, mas uma discussão que interessa a toda a sociedade.
O setor de gás natural passa atualmente por um processo relevante: a revisão das tarifas de transporte do Sistema Integrado de gasodutos. E, como acontece sempre que um assunto relevante parece complexo, surgem mitos, ruídos e até medos, que mais atrapalham do que ajudam no bom entendimento e debate.
Este artigo tem um objetivo simples: esclarecer, de forma transparente e acessível, como funciona o cálculo das tarifas de transporte, qual a abrangência da revisão tarifária e quais impactos ela realmente traz, separando fatos de fantasias.
Tarifas: Quem define e como são definidas?
A regulação do transporte de gás natural no Brasil não surgiu da noite para o dia. Ela é um processo vivo, evolutivo e construído de forma colaborativa entre regulador, agentes do mercado e sociedade.
O modelo de transporte de gás no Brasil, adotado pela Nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021), segue princípios aplicados internacionalmente. Nele, os transportadores são remunerados de acordo com o regime da Receita Máxima Permitida (RMP), que garante a cobertura dos custos e despesas operacionais, dos tributos e uma remuneração justa pelos investimentos realizados. Esta Receita Máxima Permitida é então repartida pelos usuários do Sistema de Transporte, de acordo com o volume contratado e critérios aprovados pela agência reguladora (ANP).
No transporte, o início de recebimento da remuneração dos investimentos por meio das tarifas ocorre apenas a partir do momento em que os ativos entram efetivamente em operação.
No período de transição, durante a vigência dos contratos de longo prazo firmados antes da Nova Lei do Gás (Contratos Legados), a receita dos transportadores é composta pelo somatório da receita desses contratos com a RMP referente à parcela da Base Regulatória de Ativos (BRA) não remunerada pelos legados. No caso da TAG, não houve recuperação, até o momento, dos novos investimentos que compõem a BRA não remunerada pelos legados e que foram realizados a partir da aquisição da companhia em 2019.
O processo previsto em lei para aprovação das tarifas de transporte consiste no encaminhamento pelos transportadores da proposta tarifária ao regulador que, após análise e consulta pública ao mercado, procederá ao processo de aprovação. Ou seja, as tarifas de referência são propostas pelo transportador e aprovadas pelo regulador.
Mas afinal, o que é a Revisão Tarifária?
Imagine que você tem um negócio cuja atividade é oferecer o serviço de transporte de cargas por anos a fio. Naturalmente, os custos desse transporte precisam ser revisados de tempos em tempos: custos de manutenção e depreciação dos ativos utilizados, remuneração adequada dos investimentos que você realizou para garantir a segurança e confiabilidade deste serviço, e até adequação das instalações e produtos para atender às mudanças nas necessidades dos clientes. Esta lógica não é diferente quando o tema é o transporte de gás por gasodutos.
É importante diferenciar dois processos que às vezes são confundidos: (i) Atualização monetária das tarifas: é feita a cada ano, basicamente uma correção pela inflação, conforme os índices estabelecidos em contratos registrados na ANP e (ii) Revisão tarifária: ocorre, de acordo com a Resolução ANP 15/2014 (resolução de tarifas vigente - RANP 15/14), a cada cinco anos, e tem como objetivo a atualização da metodologia e parâmetros macroeconômicos aplicáveis a novos contratos celebrados ou a ativos construídos após a sua publicação.
No atual contexto, o termo “Revisão Tarifária” assumiu uma conotação mais ampla para o público em geral, e é utilizado para todo o processo de cálculo das tarifas no regime de entradas e saídas, a partir do término dos contratos legados.
Desde o início do processo de abertura de mercado, em 2021, a TAG vem realizando apenas a atualização monetária de suas tarifas, sendo mantida a mesma receita total prevista nos contratos legados. E mais: os ganhos acima desta receita - como penalidades, excedentes ou os multiplicadores dos produtos de curto prazo - foram repassados de volta ao mercado, corrigidos pela taxa Selic por meio de mecanismo regulatório, o que permitiu, inclusive, a redução no valor real da tarifa média (“tarifa postal”) em cerca de 23% nos últimos dois anos.
O acesso de novos supridores à rede da TAG por meio de contratação e tarifas de entrada e saída provou, na prática, que a concorrência faz bem. Um exemplo prático disso foi a também queda em cerca de 20% no preço final do gás nos mercados atendidos pelo transportador, em comparação com demais regiões graças à entrada de novos fornecedores e à maior eficiência do sistema.
Os gráficos a seguir ilustram alguns efeitos da evolução das tarifas e da abertura de mercado na rede de transporte da TAG:
Por fim, de acordo com dados divulgados pela consultoria Rystad, apenas em 2022, a economia na aquisição do gás natural pelas distribuidoras, em função da redução de preço propiciada pela maior competição após o acesso de novos supridores via sistema de transporte, foi em torno de 2 bilhões de reais, o que, para algumas distribuidoras do Nordeste, chegou a ser 5 vezes o valor pago na contratação do transporte.
Mitos que precisamos superar
Um dos mitos mais recorrentes é imaginar que os contratos de transporte antigos, firmados antes da Nova Lei do Gás, seriam uma espécie de passado inglório, com valores inflados para beneficiar o valor de venda dos gasodutos. Isso não corresponde à realidade. Estes contratos foram firmados com prazos longos, na primeira década dos anos 2000, e serviram como instrumentos para viabilizar a integração gasífera do país.
Por exemplo, o segundo contrato Malha Nordeste da TAG, ainda vigente, foi firmado em 2006 com duração de 20 anos. Este contrato foi elaborado com as premissas técnicas, econômicas e jurídicas da época, cujo desenvolvimento foi acompanhado pela agência reguladora. O custo médio ponderado de capital (WACC) foi calculado de acordo com a metodologia homologada pela ANP, conforme documentos públicos e registrados, como a Nota Técnica 54/2002 - SCG. Este é um histórico relevante na história dos contratos anteriores à Nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021) - os também chamados Contratos Legados.
Quando, anos depois, em 2019, os transportadores proprietários dos ativos contemplados pelos Contratos Legados para prestação do serviço de transporte foram vendidos pela Petrobras a novos investidores - processo acompanhado de perto pelo Tribunal de Contas da União (TCU) -, os valores de tais contratos fizeram parte da avaliação, exatamente como em qualquer negócio que envolve transações de infraestrutura ao redor do mundo.
Quanto mais transparência melhor...
É natural que, no contexto da revisão tarifária, haja interesse na divulgação das informações sobre o cálculo das tarifas dos Contratos Legados. Contudo, é igualmente importante entender que (i) o formato destas informações reflete as exigências regulatórias da época em que os contratos foram firmados; (ii) são contratos de longo prazo, que têm natureza de negócio jurídico perfeito, devendo ser preservados, e tiveram o acompanhamento e registro na ANP e (iii) sua divulgação não tem o poder de alterar condições e direitos de receita do transportador, conforme disposto no artigo 44, parágrafo 1º da Nova Lei do Gás.
Além disso, em relação à transparência na execução dos Contratos Legados e em cumprimento da Portaria ANP 1/2003, os transportadores já divulgam em seus sites dados por contrato, como tarifas, carregadores, vigência e critérios de reajuste.
Então o que muda com a “Revisão Tarifária”?
A revisão em curso não tem o poder de alterar os direitos de receita dos Contratos Legados que permanecerão vigentes, mas rever parte do numerador tarifário da TAG. Esta parte do numerador inclui a consideração, no cálculo da receita, do valor residual dos ativos cobertos pelo Contrato Legado que deixará de vigorar, do valor residual dos investimentos realizados e ainda não remunerados e do valor dos investimentos projetados para o ciclo tarifário de 5 anos, objeto da revisão em curso. No caso da TAG, o término do primeiro Contrato Legado, o Malha Nordeste, acontecerá em 31 de dezembro de 2025.
Neste ponto, é importante ressaltar que o termo “Revisão Tarifária”, conforme descrito no artigo 19º da Resolução ANP 15 de 2014 (RANP 15/2014), restringe-se à atualização e adequação quinquenal da metodologia e dos parâmetros para o cálculo da remuneração de investimentos às condições macroeconômicas e de mercado prevalecentes no país.
Hoje, porém, o desafio é muito maior. O que chamamos de “Revisão Tarifária” engloba a revisão do cálculo tarifário em um novo regime de contratação de entradas e saídas, considerando-se o término gradativo dos Contratos Legados de transporte e uma regulação incompleta. Uma empreitada para a qual ainda há um caminho regulatório a ser construído, como a revisão da RANP 15/2014, mas também boas bases sobre as quais é possível avançar.
Com o vencimento do contrato Malha Nordeste, um dos componentes do numerador tarifário - parte da receita anual a qual o transportador tem direito - deverá ser calculado com base na aplicação das regras estabelecidas pela Nova Lei do Gás, por algumas referências da atual RANP 15/14, e, por fim, pela Nota Técnica 13/2019-SIM, que aprovou a metodologia tarifária aplicada na Chamada Pública da TBG em 2019.
No âmbito da parcela do numerador tarifário (RMP) objeto de revisão, o escopo das decisões a serem tomadas dizem respeito a quais custos, despesas e investimentos serão necessários à prestação eficiente do serviço para atendimento da demanda do mercado, e qual a remuneração justa de tais investimentos – representada pela definição da taxa conhecida como WACC, acrônimo em inglês para Custo Médio Ponderado de Capital.
Já no âmbito do denominador tarifário (repartição pelo volume contratado), ou seja, a quantidade e a forma como se divide a Receita Máxima Permitida do Transportador, cabe destacar que a abrangência das discussões inclui elementos como o percentual de recuperação da receita entre os pontos de entrada e saída, o grau de fator locacional e a adoção de tarifas integradas, que são temas relevantes na determinação das tarifas que cada usuário paga pelo uso da rede integrada.
Adicionalmente, no tema do denominador tarifário, a criticidade de soluções acerca da integração dos setores de gás e eletricidade e eliminação de configurações de by-pass ao transporte são dois elementos-chave e com forte impacto nas tarifas de transporte.
Como organizar este debate?
O desafio agora é técnico, transparente e coletivo: como calcular da forma mais justa possível a nova tarifa? Quais investimentos, custos e despesas são necessários? Como repartir esta conta? Como garantir que o custo do transporte - que hoje representa cerca de 10% do preço final do gás - continue eficiente, competitivo e previsível?
Para conduzirmos esta discussão ao longo de 2025, dois processos serão fundamentais: (i) a Revisão da Resolução ANP 15/2014, que trata da metodologia de cálculo das tarifas; e (ii) a Consulta Pública das Tarifas de Transporte para o período 2026-2030, na qual todos - empresas, governo, consumidores e sociedade poderão opinar sobre critérios e valores utilizados pelo transportador no cálculo do numerador (Receita) e denominador (Repartição pelo volume contratado).
Portanto, é fundamental a razoabilidade do debate, o foco nas escolhas necessárias e o respeito à segurança jurídica que, afinal, serve de balizadores para todos os investidores do segmento de energia, garantindo estabilidade e atraindo projetos capazes de gerar empregos e desenvolver a economia do país.
A experiência europeia, por exemplo, conduziu a modernização do mercado por meio de novas regras operacionais, como alteração de cláusulas de destino, mas sem ferir os direitos de receita de seus contratos legados, alcançando resultados expressivos de aumento da liquidez e transformação do mercado por meio de um conjunto integrado de diretrizes e práticas regulatórias com segurança jurídica e respeito aos compromissos firmados.
Depois do medo, vem o mundo
Estamos, portanto, em um momento crucial. O debate não deve ser sobre medos ou ameaças, mas sobre escolhas: como construir um modelo tarifário que garanta eficiência, segurança jurídica e tarifas justas, estimulando o crescimento do mercado e a transição energética do Brasil.
A revisão tarifária e seus resultados são, antes de tudo, uma escolha dos agentes que atuam no ecossistema de gás e energia, sobre os investimentos, custos e despesas necessários à prestação eficiente, segura e confiável do serviço, e sobre como reparti-los entre seus usuários, respeitando-se o ordenamento jurídico e regulatório vigentes.
E, neste contexto, nada melhor para reflexão que a frase de Clarice Lispector, “Depois do medo, vem o mundo.” Então, que o medo dê lugar ao debate transparente, razoável e fundamentado. Porque o mundo — e o mercado de gás — será exatamente aquilo que escolhermos construir, juntos.
*Cristiane Ribeiro é economista formada pela UERJ com pós-graduação em finanças e gestão de negócios pela FGV e consultora de Inteligência Tarifária na Transportadora Associada de Gás - TAG.