
Opinião
Quem paga a farra do GNL?
Os contratos de afretamento dos FSRUs geram uma saída diária de US$ 1 milhão, pago a armadores estrangeiros. Em quatro anos, esses contratos consomem US$ 1,5 bilhão, pago pelos consumidores do setor elétrico

A definição do modelo para o Leilão de Reserva de Capacidade - LRCap impõe aos formuladores das políticas públicas uma série de escolhas determinantes para o futuro da matriz elétrica brasileira. Não se trata de um debate trivial, tampouco deve ser conduzido com simplificações enviesadas
Estão em jogo impactos econômicos de longo prazo, riscos geopolíticos relevantes e, acima de tudo, a segurança energética do país e a modicidade tarifária. Para preservá-las e avançar de forma consistente na transição energética, o Brasil precisa de alternativas de geração que garantam prontidão efetiva e de um modelo de desenvolvimento que promova o mínimo custo para o mercado de energia como um todo.
Entre as simplificações mais evidentes está a defesa equivocada de soluções baseadas no suprimento individualizado de Gás Natural Liquefeito (GNL). Tal proposta sugere que a importação de GNL por meio de terminais flutuantes de regaseificação (FSRUs) de uso exclusivo seria melhor para o país do que otimizar o uso da infraestrutura existente e compartilhada de gasodutos de transporte e distribuição.
As ditas vantagens do modelo isolado são falácias que drenam recursos do país para o exterior. Uma farra para alguns agentes descolados das reais necessidades do sistema e do país.
As usinas conectadas à malha de transporte oferecem maior confiabilidade e flexibilidade para atender aos requisitos de potência firme exigidos pelo LRCap. Elas operam em uma rede estável, com menor risco logístico e maior confiabilidade de fornecimento.
Em contrapartida, as usinas supridas exclusivamente por GNL importado dependem de uma cadeia de suprimento frágil, sujeita a intempéries e forte volatilidade dos preços internacionais. Desde o conflito na Ucrânia, por exemplo, cargas de GNL têm sido importadas muito acima dos preços de referência considerados nos leilões de energia. Esses custos adicionais são repassados aos consumidores de energia por meio de encargos setoriais.
Além disso, esse modelo baseado em terminais flutuantes de GNL impõe ao país uma conta pouco divulgada, mas muito significativa: os contratos de afretamento dos navios regaseificadores geram uma saída diária de recursos de US$ 1 milhão, pago a armadores estrangeiros. Em quatro anos, os contratos de afretamento desses navios consomem US$ 1,5 bilhão, pago pelos consumidores do setor elétrico. São valores que poderiam estar sendo investidos no fortalecimento da indústria nacional.
Atualmente, há oito navios regaseificadores ancorados permanentemente em terminais de GNL na costa brasileira. É uma capacidade total de 150 milhões de m3/dia, mais do que o dobro da demanda nacional de gás, e mais de 4 vezes a demanda por gás flexível que as empresas têm. Ou seja, o Brasil não precisa de novos terminais de GNL.
Além disso, o que tem ocorrido na prática é que o despacho termoelétrico para atendimento de potência vem sendo atendido majoritariamente com o gás natural já disponível nos gasodutos de transporte. Ou seja, ainda não foi comprovada a possibilidade de se atender aos requisitos de prontidão e despacho do setor elétrico a partir de um terminal de GNL desconectado ou sem capacidade contratada com o sistema de transporte.
A proposta de priorizar um modelo de contratação para o LRCap que minimize o custo total do sistema - objetivo que deve ser perseguido pelo Ministério de Minas e Energia - enfrenta resistência acirrada dos que se beneficiam das distorções do modelo atual, que repassam integralmente os custos, mas não os benefícios do terminal para o setor elétrico.
Importante ressaltar que a proposta de revisão do tratamento do custo de transporte nos leilões de energia não geraria receitas adicionais para as transportadoras, nem novos custos para o setor elétrico, que sempre utilizou essa infraestrutura, desenvolvida, ampliada e reforçada para garantir o despacho termoelétrico pleno. Muito pelo contrário: pela proposta, as transportadoras repassariam ao setor elétrico as receitas decorrentes do aproveitamento por terceiros da capacidade de transporte disponibilizada ao atendimento do parque termoelétrico, em um regime semelhante ao cashback.
A defesa de um modelo integrado, com uso eficiente da malha de transporte nacional de gás, é a escolha que melhor atende ao interesse público. Esse modelo aumenta a confiabilidade no suprimento, reduz a dependência externa, estimula a concorrência entre supridores e impulsiona o aproveitamento dos recursos nacionais, com impactos positivos sobre a segurança energética, a modicidade tarifária e a eficiência do sistema elétrico.
O Brasil precisa encerrar a farra dos projetos de GNL, que drenam divisas, criam sobrecapacidade desnecessária e expõem o consumidor a riscos e custos elevados. Estimular o desenvolvimento do mercado de gás natural nacional, priorizando a infraestrutura integrada, é uma decisão estratégica essencial para construir um sistema energético mais resiliente, competitivo e comprometido com o uso racional das infraestruturas e dos recursos públicos.