Opinião

Repetro-Sped e contratos de afretamento por tempo: nova interpretação?

A notícia da recente negativa do Repetro-Sped para a importação de um navio sonda pela Petrobras vem causando preocupação ao setor de óleo e gás

Por André Simão

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

A notícia da recente negativa do REPETRO-SPED para a importação de um navio sonda pela Petrobras vem causando preocupação ao setor de óleo e gás, diante do receio de que o regime especial passe a ser indeferido ou dificultado para a vinda de novas embarcações.

A recusa seria decorrente de uma nova interpretação pela fiscalização da Receita Federal, supostamente em razão de alterações pontuais no Manual do Repetro – cujo propósito é orientar os contribuintes, facilitar a interpretação e padronizar procedimentos relativos à aplicação do regime especial aduaneiro e tributário, sem jamais poder restringir o seu alcance.

Aparentemente, segundo noticiado, a Receita Federal estaria estendendo, também para afretamentos por tempo, uma restrição que a Instrução Normativa (IN) estabelece especificamente para afretamentos a casco nu.

Segundo a IN (art. 3º, § 4º, IV), para que seja reconhecida a admissão temporária para utilização econômica (e, portanto, o Repetro temporário), sendo o afretamento na modalidade a casco nu, e havendo contratos de execução simultânea (importação/afretamento + prestação de serviços por empresa no Brasil), o tomador de serviços (operadora) deve realizar diretamente a importação (registrar a DI com seu CNPJ), caso conste nos contratos que ele é o responsável pelo pagamento das parcelas relativas à locação internacional.

O fundamento, em síntese, é que o regime aduaneiro especial da admissão temporária para utilização econômica (que dá fundamento à importação temporária sob o Repetro temporário), por definição contida no Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009, art. 373, § 1º), admite o emprego dos bens importados apenas (a) na prestação de serviços a terceiros ou (b) na produção de outros bens destinados a venda. Desse modo, a empresa contratada pode importar (em seu nome) bens no Repetro temporário para a prestação de serviços (mantendo consigo a posse do bem importado), mas não para uma simples locação nacional (que ocorreria, na etapa seguinte, se o objeto do contrato for apenas o de afretamento a casco nu).

 A própria IN ressalva que as restrições do § 4º, entre as quais a destacada acima, não se aplicam no caso de bem admitido com base em contrato de prestação de serviços por empreitada global, ou seja, quando os valores pagos pela operadora correspondam totalmente (e apenas) a uma prestação de serviços, sem outras parcelas relativas a locação, cessão, disponibilização ou arrendamento de bens.

A restrição do art. 3º, § 4º, IV, porém, diz respeito tão somente ao afretamento a casco nu, e não se aplica ao afretamento por tempo. A IN, assim como a Lei 9.432/1997, distingue os afretamentos por tempo e a casco nu, contendo provisões distintas para cada um. Entre outros exemplos, basta ver o artigo 14, que em previsão similar se limita ao afretamento a casco nu, excluindo de sua aplicação o afretamento por tempo.

Como se vê, para essas limitações, a legislação se refere precisamente ao afretamento a casco nu. E, ainda que se pudesse vislumbrar, por hipótese, alguma margem de dúvida qualquer, é regra basilar de hermenêutica jurídica que dispositivo restritivo se interpreta restritivamente, e, como impõe o Código Tributário Nacional (CTN), a autoridade fiscal é proibida de usar analogia para poder exigir tributo.

Por outro lado, em relação ao afretamento por tempo, para as atividades abrangidas pelo Repetro, “a contratada da operadora, em afretamento por tempo ou para a prestação de serviços”, com sede no Brasil, pode se habilitar ao regime especial, como garantem o Decreto 6.759/2009. E mais: a contratada, ou sua subcontratada, “também poderá ser habilitada ao Repetro para promover a importação de bens objeto de contrato de afretamento, em que seja parte ou não, firmado entre pessoa jurídica sediada no exterior e a detentora de concessão ou autorização, desde que a importação dos bens esteja prevista no contrato de prestação de serviço ou de afretamento por tempo”. A previsão contempla, assim, também as situações em que a obrigação de importar é repassada pela afretadora à empresa prestadora de serviços contratada no Brasil, numa estrutura contratual tripartite, de execução simultânea (Lei 9.481/1997).

O Manual do Repetro reitera esse procedimento, perfeitamente compatível com o regime, ao dizer, com todas as letras, que, quando uma empresa estrangeira é contratada pela operadora para a prestação de serviços, uma prestadora de serviços estabelecida no Brasil deverá fazer parte do contrato, para prestar os serviços contratados e importar os bens, quando a importação não for realizada diretamente pela operadora (Introdução aos Contratos, item 4 – Contrato de Prestação de Serviços, Nota).

Fica claro, portanto, que a limitação cogitada, em relação aos casos de afretamento por tempo, não tem respaldo legal e não é compatível com o Repetro.

E nesse contexto não apresenta qualquer relevância, e em nada altera as conclusões expostas, a recente supressão, no Manual do Repetro, do parágrafo que atesta que “o contrato de afretamento a casco nu é um contrato de importação” e “o contrato de afretamento por tempo é um contrato complexo composto tanto de contrato de importação quanto de contrato de prestação de serviços", no tópico relativo a Contrato de Afretamento, Procedimentos para Concessão do Repetro-Temporário.

A interpretação limitante, tendente a reduzir o alcance do Repetro nos casos de afretamento por tempo, enxertando-lhe condição (importação direta pela empresa que paga as contraprestações) não imposta pela legislação para essa modalidade contratual, gera, contudo, grave insegurança jurídica e oneração dos investimentos.

Vale lembrar que o Repetro diz respeito à desoneração de tributos na etapa inicial de pesquisa, exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, permitindo maior atratividade para investimentos de capital intensivo e elevado risco, pois ainda não se sabe, antes de furar um poço, se se encontrará petróleo em volume comercial viável. Essa desoneração inicial, na fase de maior incerteza, viabiliza a decisão pelo investimento num cenário de competição internacional por ele, trazendo sucesso aos leilões, que geram receita para o Estado, que arrecada também na forma de participações governamentais. A perda de atratividade acarreta a migração do investimento para a exploração de óleo em outro país – e, no contexto da transição energética, muito provavelmente, a não-exploração futura das reservas existentes. Ou seja, o Estado deixa de arrecadar.

Além disso, o Repetro se volta aos tributos sobre o consumo (II, IPI, Pis, Cofins, Pis-importação, Cofins-importação, com reflexo sobre ICMS), nas atividades de importação definitiva ou temporária de bens, ou de aquisição nacional de bens aqui industrializados, destinados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural. Esses tributos, idealmente, adotam a técnica da não cumulatividade, dando ensejo ao aproveitamento de créditos ao longo da cadeia de produção, pois buscam onerar o consumo final do produto resultante do processo industrial. A tributação sobre o consumo, portanto, ocorre plenamente ao final, como na aquisição do derivado de petróleo pelo consumidor final, independentemente do regime especial eventualmente aplicado na etapa inicial, visto que o tributo desonerado numa etapa não gera abatimento de créditos na etapa seguinte. Trata-se, portanto, de um benefício que diz respeito mais ao momento da arrecadação (se na etapa inicial de investimentos ou depois, na venda da produção) do que a uma suposta renúncia de arrecadação ou privilégio para uma indústria.

Por fim, quanto aos valores em jogo na interpretação das normas, a Lei 9.784/1999 consagra que a autoridade administrativa deve interpretar a norma administrativa de forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige. Esse critério, além de mais adequado juridicamente ao caso, fará mais bem ao país que a tentativa, no afã de arrecadar, de impor uma interpretação surpresa e ultra restritiva (para além da interpretação “literal” sobre suspensão do crédito tributário ou isenção, de que trata o art. 111 do CTN), que rejeitaria o Repetro mesmo nas operações típicas que visou desonerar e incentivar.

André Simão é advogado tributarista e sócio do escritório Leal Cotrim Advogados

Outros Artigos