
Contabilidade de carbono: o elo perdido da COP da ação
Opinião
Contabilidade de carbono: o elo perdido da COP da ação
Ação para mudanças climáticas significa mobilizar funding. Sem fluxo de capital, nem os melhores projetos ganham escala. Se você concorda que a contabilidade de carbono permite criar a moeda universal de que precisamos para destravar a ação climática, fica o convite para ler esse artigo

Precisamos de trilhões, direcionados aos lugares certos, muitas vezes onde os recursos são escassos, mas o potencial de impacto é enorme. Se descarbonização é medida em toneladas de CO₂, então os créditos de carbono são a moeda universal da ação climática. E, como qualquer moeda, precisam de padrões harmonizados de contabilidade, para que empresas e países possam comprovar, sem ambiguidade ou dupla contagem, seu real impacto climático e o fluxos de capital possam acontecer.
O desafio é complexo, mas o retorno é enorme. Precisamos é de um mutirão, todos contribuindo, ninguém buscando holofotes, todos focados em fazer acontecer. Se você concorda que a contabilidade de carbono permite criar a moeda universal de que precisamos para destravar a ação climática, fica o convite para ler esse artigo.
Estamos a menos de 100 dias da COP30, aquela que tem sido chamada de COP da ação. Transformar em ação um desafio global de tais proporções e de tamanha complexidade, no entanto, nao é fácil!
Não poderia ser mais oportuna a escolha da palavra mutirão pelo CEO da COP30, Andre Correa do Lago, como resumo mais preciso do espírito necessário para, depois de 30 anos ou 30 COPs, avançar de verdade na direção das soluções urgentes e concretas para o tema das mudanças climáticas.
Mutirão é uma daquelas palavras únicas e especiais da língua portuguesa que simplesmente não têm tradução. Conversei bastante com my friend chat GPT tentando achar uma palavra em inglês que me ajudasse a explicar o conceito fora do Brasil, nessa minha jornada de tentar de alguma forma contribuir para escalar projetos de descarbonização e a importância dos creditos de carbono.
A melhor tradução apareceu num papo descontraído com as minhas filhas e uma amiga gringa delas. Expliquei que um mutirão era um ajuntamento de pessoas que se organizam voluntariamente após uma grande tragédia climática (bom exemplo para ficar no tema: um furacão, um tsunami, uma enchente) que causa grandes perdas a uma determinada comunidade, para tentar ajudar de varias formas, desde a busca por desaparecidos, doação de alimentos, criar um abrigo seguro, tratar de feridos, limpeza, reconstrução, reorganização dessa comunidade para voltar a vida normal, subsistir e de preferência prosperar.
Crowd engagement foi a sugestão, que ainda por cima me conectou imediatamente com o enorme desafio de captar recursos de todas as fontes disponíveis para resolver o desafio das mudanças climáticas: crowd funding, nesse caso atraindo governos, empresas, bancos de todos os tipos e tamanhos, e por aí vai.
Funding. Que me perdoem os puristas, funding é essencial. Sem isso não existem movimentos ou projetos que se movam, pelo menos não em escala, e certamente não na escala que o desafio de lidar com as mudanças climáticas requer. São os fluxos financeiros que destravam e viabilizam as grandes iniciativas.
O mundo financeiro, que nasceu com as primeiras trocas de mercadorias, em algum momento precisou de uma moeda para agilizar as trocas de produtos diferentes e vencer distâncias. Foi necessário então desenvolver regras e padrões claros e conhecidos de mensuração, contabilidade, auditoria, gestão de risco, precificação, conversibilidade.
Os livros contábeis se transformaram em planilhas, depois em sistemas. Foram criadas métricas, múltiplos, ratings, padrões, convenções que permitem estimar ou calcular o valor de qualquer empresa, produto ou mercadoria, não só hoje como no tempo.
Juntando as pontas. Precisamos descarbonizar o mundo para tentar conter as mudanças climáticas que já estão causando tantos transtornos e catástrofes ao planeta. São necessários trilhões e trilhões de dólares para resolver esse problema.
O problema é fundamentalmente global, porque não adianta um pais se comprometer se seu vizinho não fizer o mesmo.
O funding não está necessariamente onde os melhores projetos podem ser desenvolvidos. Países menos desenvolvidos e mais pobres precisam arrumar dinheiro para fazer a sua parte. Não basta ter o dinheiro. Ele tem que fluir na direção correta. Precisamos agilizar os fluxos financeiros que vão financiar essa batalha global.
A história se repete. Está faltando uma moeda. Se descarbonização se mede em toneladas de carbono, o crédito de carbono é a moeda das mudancas climáticas!
Seguindo o raciocínio. Para que empresas de diferentes setores pudessem ser avaliadas e precificadas foram criadas normas contábeis aceitas internacionalmente, com métricas de alavancagem, liquidez, qualidade e risco. Bancos passaram a poder quantificar tudo isso e traduzir em juros para emprestar dinheiro. Os mercados passaram a calcular o valor de uma empresa e consequentemente de suas ações para acessar financiamento através do mercado de capitais.
Os créditos de carbono, moeda das mudancas climáticas, precisam urgentemente de uma contabilidade própria. Uma contabilidade que permita que cada país ou empresa consiga, de forma inequívoca, representar em seus balanços o real impacto de suas operações.
Até aqui, o foco principal foi o de reportar emissões, no caso das empresas usando predominantemente a metodologia do GHG Protocol, dividida em Escopo 1 ou emissões diretas, aquelas controladas e decorrentes da própria operação; Escopo 2 ou emissões indiretas, relacionadas à energia comprada/consumida; e Escopo 3, também indiretas mas fora do controle da operação.
Essa forma de reporte no entanto gera dupla contagem, além de ser fundamentalmente auto-declarada. E, mais importante, não reflete corretamente os esforços de redução de emissões, não estimula o aumento da produção de alternativas que reduzam emissões na cadeia e não valoriza corretamente a busca por eficiência.
A essa altura do campeonato já caiu a ficha para todo mundo (espero!) de que não existe uma varinha de condão que resolva a questão das mudanças climáticas de uma tacada só. O mundo precisa de energia, precisa de materiais, tanto quanto precisa descabonizar a economia.
Medir emissões absolutas gera sinal econômico potencialmente equivocado. Precisamos medir emissões no nível dos produtos, buscar o MWh que emite menor quantidade de carbono, o processo produtivo - desde a extração do minério até a produção de alumínio que gera a menor quantidade de carbono por tonelada, e que depois se transforma num automóvel ou eletrodoméstico emitindo o mínimo.
Para aqueles produtos onde ainda não é possível reduzir as emissões para níveis aceitáveis por questões tecnológicas ou mesmo de custo excessivo, que se possa comprar créditos de carbono como forma de compensação e computar essa compra no produto.
O objetivo fundamental tem que ser medir as emissões de carbono em cada etapa do processo produtivo, sem dupla contagem, contabilizando na forma de intensidade de carbono final de cada produto.
Partindo da intensidade de carbono, medida em toneladas por unidade de energia, por tonelada de produto, ou outro valor unitário que reflita corretamente um produto específico, basta multiplicar pelo volume produzido para obtermos as emissões absolutas de cada empresa ou de cada país.
Parece óbvio. Anima ver a movimentação e bastante consenso sobre a importância e urgência de avançar nesse tema especialmente com a aproximação da COP30 em inúmeros grupos que tenho participado, a nível internacional e entre as lideraças da COP30.
Harmonização de contabilidade de carbono aparece na lista das 30 prioridades, tendo um grupo dedicado a isso entre os chamados activation groups subordinados ao high level champion e na SBCOP, que se tornou chave por representar pela primeira vez, de forma estruturada, a iniciativa privada em uma COP.
São 21 congêneres da CNI (Confederação Nacional da Indústria) Brasileira que ancorou a iniciativa, representando 62 países e mais de 31 milhões de empresas espalhadas pelo mundo. O tema de contabilidade de carbono tem atraído a atenção de todos, com inúmeras coalizões ou reguladores de indústrias específicas.
Só que não. A abordagem usada pela liderança da COP30, chamando de harmonização, é essencial. São inúmeras iniciativas ou metodologias capitaneadas por pesos pesados, indústrias ou reguladores. O objetivo precisa ser o de desenhar os guidelines de um minimo denomidador comum, a partir do qual questões especificas possam ser detalhadas para permitir avanços.
Se cada um estiver mais focado em defender a própria metodologia do que criar um arcabouço inicial, dificilmente conseguiremos desatar esse nó. Voltemos mais uma vez à contabilidade financeira. Quantas atualizações foram feitas nas principais metodologias aceitas globalmente como o IFRS ou US GAAP desde a primeira implementação?
O desafio é grande sempre, mas bastaria imaginar o que pode vir a reboque da contabilidade de carbono para que a mobilização fosse óbvia. A definição da intensidade de carbono de cada produto permitiria a precificação e valorização do atributo implícito. Seria possível premiar um determinado produto no tempo à medida que a evolução tecnológica ou aumento de eficiência permita redução de emissões.
O consumidor poderia escolher, entre dois produtos similares, aquele com menor impacto nas mudanças climáticas. Investidores conseguiriam medir de forma objetiva o risco relacionado às mudanças climáticas inerente a cada operação ou produto e, consequentemente, de cada empresa.
O conceito traria estímulo e escala aos créditos de carbono na medida em que eles poderiam ser associados a um determinado produto compensando emissões, potencialmente trazendo maior competitvidade a produtos de difícil descarbonização através de créditos de reflorestamento ou CCS, sem deixar, portanto, de promover redução de emissões.
A discussão precisa ser fundamentalmente global, mas não custa mencionar o desafio adicional de mensuração dos produtos sustentáveis brasileiros: agricultura, biocombustíveis ou florestas, tema de artigos passados nessa coluna.
Culturas tropicais são fundamentalmente mais eficientes do que seus pares de clima temperado, seja na conversação de energia solar em biomassa, seja na captura de carbono no solo. Essa eficiência, que se traduz em maior captura ou menor pegada de carbono, precisa ser devidamente reconhecida e precificada.
Vale ou não vale um crowd engagement em prol da criação de mecanismos e alternativas de funding, a partir do desenho de um primeiro arcabouço de contabilidade de carbono, do qual seja possível avançar e agir? Mas para isso acontecer o espírito tem que ser de mutirão, onde cada um contribui como pode com o melhor de si, sem querer aparecer, simplesmente com objetivo de resolver e fazer acontecer.
Esse espírito é bem mais difícil de traduzir, mas tenho andado mais otimista com esse assunto com o privilégio de liderar essa iniciativa na SBCOP.