
Do lixo produzido pelas renováveis ao lucro limpo
Opinião
Do lixo produzido pelas renováveis ao lucro limpo
Estima-se que mais de 2 milhões de sistemas fotovoltaicos já estejam em operação no país, muitos atingindo o fim de sua vida útil entre 2030 e 2040. Cada t de painéis descartados pode conter materiais recuperáveis com valor superior a US$ 500, cifra que se eleva consideravelmente no caso das baterias

Coautor: Fernando V. Cerna*
A transição energética apresenta uma miríade de barreiras para avançar de forma justa e sustentável. Entretanto, é preciso estar atento às diversas oportunidades, pois estas podem contribuir decisivamente para que os objetivos associados à justiça e sustentabilidade sejam alcançados.
Observa-se que as tecnologias associadas a energia limpa que avançam rapidamente na Amazônia é a fotovoltaica para geração de eletricidade e as baterias, principalmente as de íon-lítio, para armazenamento de energia, seja para sistemas de geração de eletricidade seja para mobilidade elétrica.
Estudo publicado pelo Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA), em 2023, que considerou os resíduos produzidos por sistemas fotovoltaicos off grid somente no âmbito do Programa Mais Luz para a Amazônia, estimou que serão produzidas 119.356 toneladas de resíduos provenientes dos módulos pelos sistemas de 180 kWh e 31.854 toneladas pelos sistemas de 45 kWh.
Por sua vez, as baterias de íon-lítio serão responsáveis pela produção de 37.000 a 90.000 toneladas de resíduos. É oportuno registrar que as baterias de íon-lítio trazem potenciais riscos associados ao vazamento de metais pesados, à instabilidade térmica e à contaminação de solos e águas.
Esses números podem crescer significativamente se forem considerados os projetos que estão sendo desenvolvidas no âmbito de programas capitaneados por agentes públicos nas diferentes esferas de poder, organizações não governamentais e instituições de pesquisa.
No contexto mundial, estima-se que até 2050 mais de 78 milhões de toneladas de painéis FV alcançarão o fim de sua vida útil.
Esses resíduos concentram materiais de alto valor estratégico, como silício, prata, cobre, lítio, níquel e cobalto, devido à sua relevância econômica, insubstituibilidade tecnológica e papel geopolítico nas cadeias industriais de energia, mobilidade e eletrônica. São insumos essenciais para a continuidade da própria transição energética, mas cuja produção primária está concentrada em poucos países, gerando riscos de dependência e instabilidade de suprimento.
Diante desse cenário, a logística reversa e a reciclagem avançada não devem ser vistas apenas como soluções marginais, mas como vetores estruturantes de uma economia circular energética, capaz de combinar sustentabilidade ambiental, segurança de abastecimento e inovação industrial.
A logística reversa ainda ocupa um espaço tímido nas políticas públicas do setor energético. Em grande parte do mundo, faltam diretrizes claras e eficazes que assegurem a devolução, triagem, desmontagem e reaproveitamento adequado de componentes provenientes de sistemas FVs e baterias. Contudo, experiências internacionais já demonstram que essa lacuna pode ser superada com inovação tecnológica e visão estratégica.
Na Europa e na Ásia, empresas têm adotado sistemas robotizados capazes de separar camadas de módulos FVs com mais de 95% de eficiência na recuperação de materiais. Enquanto isso, startups americanas operam unidades especializadas na reciclagem de baterias, com foco na extração de lítio e no reprocessamento de células.
No Brasil, embora a cadeia ainda seja incipiente, a combinação entre demanda reprimida e o crescimento da energia solar desenha um cenário promissor para investidores atentos às oportunidades da transição energética.
Reciclar vai muito além de um imperativo ambiental. Trata-se de um negócio estrategicamente promissor. Cada tonelada de painéis FVs descartados pode conter materiais recuperáveis com valor superior a US$ 500, cifra que se eleva consideravelmente no caso das baterias. O mercado global de reciclagem de baterias de íon-lítio, por exemplo, já movimenta mais de US$ 6 bilhões anuais, com estimativas de crescimento acima de 20% ao ano até 2030.
Nesse cenário, a reciclagem deixa de ser um fim de ciclo e passa a ocupar papel central como fonte de segurança mineral, mitigando a dependência de insumos críticos importados e promovendo a autonomia industrial. Empresas que liderarem essa transformação estarão posicionadas de forma privilegiada: acesso a mercados emergentes, vantagem de políticas de incentivo e protagonismo crescente no cenário ESG.
Com uma matriz majoritariamente limpa e uma expansão vertiginosa da microgeração distribuída, o Brasil se encontra diante de uma encruzilhada estratégica. Estima-se que mais de 2 milhões de sistemas FVs conectados à rede já estejam em operação no país, muitos dos quais alcançarão o fim de sua vida útil entre 2030 e 2040. Sem políticas estruturadas e infraestrutura adequada para coleta, reuso e reciclagem, há um risco crescente de acúmulo de resíduos e geração de passivos ambientais com impactos socioambientais relevantes.
Por outro lado, esse cenário abre espaço para modelos de negócios inovadores, sustentados pela articulação entre integradores, fabricantes, cooperativas e catadores, centros tecnológicos e investidores. Tecnologias digitais como sensores IoT, inteligência artificial, plataformas de rastreamento e blockchain podem ser incorporadas à logística reversa para monitorar equipamentos, prever falhas e otimizar processos logísticos.
A engenharia elétrica nacional, portanto, depara-se com um desafio técnico-comercial de alto valor estratégico e uma janela concreta de oportunidades para liderar um novo ciclo da economia circular energética.
Reciclar painéis FVs e baterias, portanto, não é apenas uma etapa pós-consumo, é o próximo grande movimento estratégico da transição energética. Em vez de resíduos, estamos diante de minas urbanas de silício, prata e lítio, bem como de inovação. Ignorar essa fronteira é perder o timing de um mercado emergente que unifica propósito e rentabilidade, impacto ambiental e independência tecnológica.
Empresas visionárias já perceberam: o verdadeiro valor não está apenas na geração de energia limpa, mas também no domínio inteligente do seu ciclo completo. Quem enxergar os resíduos como ativos – e não como passivos – será pioneiro na construção de um novo ecossistema energético, mais resiliente, soberano e economicamente vibrante.
Porque na nova economia da energia, até o lixo carrega ouro e quem souber refiná-lo liderará o futuro.
*Fernando V. Cerna é graduado em Sistemas Elétricos de Potência pela Unac, em Lima, Peru. É mestre e doutor em Automação de Sistemas de Energia pela Unesp. Atuou como professor na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e atualmente é professor do Instituto de Engenharia, Ciência e Tecnologia (IECT) da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Minas Gerais.
Referências
1. |
Irena (2016): https://www.irena.org/publications/2016/Jun/End-of-life-management-Solar-Photovoltaic-Panels |
2. |
IEA. (2023): https://www.iea.org/reports/global-ev-outlook-2023 |
3. |
World Economic Forum. (2019): https://www3.weforum.org/docs/WEF_A_New_Circular_Vision_forElectronics.pdf |
4. |
IEA - Status of PV module recycling in selected IEA countries. (2020): https://iea-pvps.org |
5. |
Research ans Markets (2024): Resumo executive https://researchandmarkets.com |
6. |
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7. |
United Nations Environment Programme: https://www.unep.org/resources/report/circularity-gap-report-latin-america-and-caribbean |