Opinião

Importância do bioetanol da mandioca para a Amazônia

Neste terceiro artigo da série Entendendo a Transição Energética na Amazônia, o foco é mais uma vez o desenvolvimento sócio-econômico regional como meta mais abrangente e sustentável do que a simples eletrificação da região. A mandioca brava é um dos cases a ser considerado.

Por Rubem Cesar Souza

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A tônica no passado, quando se falava de sistemas isolados, se alicerçava em dois pontos. A necessidade de redução dos subsídios da Conta de Consumo de Combustível – CCC para a geração termelétrica a combustível fóssil e a necessidade de universalização do serviço de energia elétrica.

A redução da CCC foi trabalhada, basicamente, pela via da interligação dos maiores sistemas isolados, ou seja, das capitais dos estados da região Norte, ao Sistema Interligado Nacional – SIN, sendo esta efetivamente levada a efeito e, na atualidade, somente a cidade de Boa Vista-RR está desconectada do SIN. 

Essa estratégia, no entanto, não deu garantia de confiabilidade a estes centros consumidores, tanto é assim que, em 2020, aproximadamente 800 mil pessoas ficaram sem fornecimento de eletricidade por 22 dias no Estado do Amapá. 

É oportuno observar que as interligações não são acompanhadas de melhorias nos sistemas de distribuição. Nesse sentido, o estado do Amazonas está vivenciando um processo no qual a distribuidora de energia elétrica, sob a ameaça de um processo de caducidade, vive a iminência de ter sua concessão transferida, por força judicial, para outra empresa. 

É oportuno ressaltar que não se está diante do simples fato de transferência do controle de uma distribuidora para outra e sim, da transferência de uma dívida bilionária para o consumidor de energia elétrica.

Por sua vez a universalização do serviço de energia elétrica foi levada a efeito via ação federal sendo a mais recente e de maior monta o Programa Luz para Todos. Tomando como referência o Estado do Amazonas, que até hoje concentra a maioria dos sistemas isolados, verifica-se que o consumo de eletricidade no interior do estado, cresceu a uma taxa extraordinária da ordem de 17% ao ano no período de 2005 à 2020, sendo que o referido Programa teve início no ano de 2004. 

No entanto, no período de 1998 a 2020, o crescimento do Produto Interno Bruto – PIB do interior do Amazonas foi somente de 2,73% ao ano. Além disso, verificou-se um expressivo distanciamento entre o PIB do interior e da capital nesse mesmo período. Portanto, é inconteste que a oferta de eletricidade não é suficiente para promover desenvolvimento e, nesse caso, como não houve incentivo ao uso produtivo da energia o resultado não poderia ser outro. 

Fonte: Anuário Estatístico do Amazonas (SEDECTI). Evolução do PIB no Estado do Amazonas em 23 anos (1998 a 2020) (x R$ 1.000,00).

Na atualidade, no âmbito dos sistemas isolados, embora esteja mantido o desafio da universalização, a descarbonização destes vem orientando políticas públicas e fomentando as publicações científicas. Estes desafios encontram congruência no uso de fontes renováveis de energia para superá-los. 

Entendo que novamente corremos o risco de enveredarmos por um caminho que não levará a solução do principal problema que é o desenvolvimento regional ou, na melhor das hipóteses, ficaremos bem aquém de onde podemos chegar em termos de evolução socioeconômica. 

É importante frisar que não estou advogando contra as fontes renováveis de energia e sim chamando a atenção para a importância dos agentes públicos mirarem o alvo certo, ou seja, o modelo de desenvolvimento que, por sua vez, levará a escolha das fontes energéticas mais adequadas.

É possível um caminho alternativo ao que vem sendo adotado? Alicerçado em ações desenvolvidas no contexto amazônico, entendo que sim. A seguir trago um exemplo de abordagem alternativa. 

Geração de energia elétrica com etanol de mandioca

No período de 2010 à 2013 com recursos da empresa Manaus Energia S/A no âmbito do Programa de P&D regulado pela Aneel, foi desenvolvido o projeto Geração de Energia Elétrica com Etanol da Mandioca na Amazônia.

O projeto possuía duas frentes de pesquisa. A primeira consistia na produção de bioetanol de mandioca a partir de cultivares desenvolvidas pela Embrapa e adequada para ecossistemas amazônicos. Das centenas de cultivares disponíveis foram selecionadas 5 (cinco) que apresentavam indicadores de maior produtividade de raízes e teor de amido. Foi realizada a correção da acidez do solo e foram adotados os tratos culturais recomendados, obtendo-se a produtividade de 25 ton/ha. Na época, 2011, a produtividade média era em torno de 10 ton/ha na Amazônia e, na Indonésia à época o maior produtor mundial era de 20,3 ton/ha.

Convém aqui trazer à baila a pergunta recorrente; o uso energético não concorrerá com o uso alimentício da mandioca? 

Primeiro é importante entender que há várias cultivares de mandioca. Adotando o linguajar regional pode-se dividi-las em dois grupos, o da mandioca mansa (com baixo teor de ácido cianídrico) e a mandioca brava (com alto teor de ácido cianídrico). A mansa é cozida e consumida diretamente sem a necessidade de nenhum outro processamento. A brava é usada para produção de farinha e outros produtos, carecendo da retirada do ácido cianídrico, sendo esta a adequada para produção de bioetanol. 

Uma família rural típica da Amazônia cultiva em torno de 0,5 a 1 ha. Tomando uma produtividade típica de grupo familiar, esse representa em torno de 2 a 4 toneladas de raiz. O processamento para produção de farinha, destinação típica da região, é feita em fornos a lenha rudimentares e que expõe o produtor a um trabalho insalubre. 

Se for considerado que a produção fosse totalmente vendida em natural, segundo especialistas da Embrapa, um grupo familiar seria capaz de cultivar em torno de 8 ha. Logo, é possível manter a produção de alimento e ainda assim dispor de uma elevada produção para fins energéticos caso haja comprador da mandioca. Além do que, a produção de mandioca pode ser feita de forma consorciada com outras culturas como o feijão-caupi. Portanto, políticas públicas bem construídas podem assegurar que não haja a referida competição.

No tocante a produção de bioetanol, montou-se uma biorrefinaria e foi possível atingir a produtividade de 150 l/ton de mandioca, respeitando as especificações da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis – ANP. 

Na outra frente da pesquisa, fez-se a ampliação de uma termelétrica a diesel, sendo instalado dois grupos geradores de 250 kW desenvolvidos pela empresa Vale Soluções em Energia para suprir eletricamente a comunidade de Lindóia, no município de Itacoatiara/AM, com 1.107 unidades consumidoras. No dia 5 de setembro de 2013, se deu a operação da usina somente com as máquinas alimentadas por etanol, sendo esta a primeira vez que esse feito foi realizado em nível mundial.

O custo do litro do bioetanol ficou em torno de R$ 3,325, sendo que 30% se devia a impostos, predominantemente o ICMS, que é estadual. Medidas plausíveis foram sugeridas na esfera de competência do governo estadual e municipal e, sendo estas adotadas, o preço do litro cairia para R$ 2,48, inferior ao preço médio praticado à época no município de Itacoatiara (R$ 2,78/litro).

O custo de geração sem considerar a sub-rogação da Conta de Consumo de Combustível – CCC ficou em R$ 2.182/MWh. Vale salientar que nessa época a concessionária de energia elétrica havia instalado miniusinas fotovoltaicas com um custo de geração de R$ 3.302/MWh. 

A solução energética do bioetanol tem vários elementos que potencializam o desenvolvimento em bases sustentáveis, por exemplo: 

  1. gera emprego e renda próximo ao local de consumo; 
  2. ii) pode tornar produtiva áreas antropizadas; 
  3. iii) pode desenvolver cadeia produtiva com vários produtos para além do bioetanol, dado que a parte aérea da mandioca pode ser utilizada na produção de cosméticos, bem como o resíduo do descasque da mandioca pode ser usado na produção de ração, dentre outros produtos; 
  4. iv) o bioetanol pode deslocar o consumo de diesel para o transporte; 
  5. v) o bioetanol dialoga com a mobilidade elétrica, seja por meio de célula a combustível a etanol direto seja pela reforma deste para a produção de hidrogênio.

Certamente que se tal experiência tivesse sido continuada, alicerçada em desenvolvimento tecnológico, capacitação de recursos humanos, política agrícola e industrial, o cenário energético amazônico seria bastante diferente e o cenário socioeconômico teria dado saltos significativos.

Portanto, deixo para reflexão: para onde e com quem queremos ir?

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