Opinião

Entendendo a Transição Energética na Amazônia – Parte 2

A leitura equivocada do desafio e/ou a busca de resultados imediatistas continuam a relegar milhares de pessoas à miséria energética e socioeconômica, apesar de residirem em uma região rica por natureza

Por Rubem Cesar Souza

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Dentre os 6 Ds que caracterizam a atual transição energética no Brasil (Descarbonização, Digitalização, Diminuição do consumo de energia, Descentralização, Desenho de mercados e Democratização do acesso ao serviço de eletricidade), neste artigo vamos trazer alguns elementos para reflexão acerca da democratização do acesso ao serviço de eletricidade em comunidades isoladas na Amazônia brasileira. 

Prodeem, falhas e legado

A primeira ação concreta do governo federal para tratar a temática em questão consistiu na criação, em 27 de dezembro de 1994, do Programa de Desenvolvimento Energético dos Estados e Municípios (Prodeem). O referido programa tinha os seguintes objetivos: 

  1. viabilizar a instalação de microssistemas energéticos de produção e uso locais, em comunidades carentes isoladas não servidas por rede elétrica, destinados a apoiar o atendimento das demandas sociais básicas; 
  2. promover o aproveitamento das fontes de energia descentralizadas no suprimento de energéticos aos pequenos produtores, aos núcleos de colonização e às populações isoladas; 
  3. complementar a oferta de energia dos sistemas convencionais com a utilização de fontes de energia renováveis descentralizadas e; 
  4. promover a capacitação de recursos humanos e o desenvolvimento da tecnologia e da indústria nacionais, imprescindíveis à implantação e à continuidade operacional dos sistemas a serem implantados.

No âmbito do Prodeem surgiu, em larga escala, o uso de sistemas fotovoltaicos para suprimento de residências, escolas, postos de saúde, iluminação pública, centros comunitários e sistema de bombeamento d'água. Devido à falta de uma regulação adequada, as concessionárias se omitiram da função de assumir a operação dos sistemas. 

Além disso, nessa ocasião, desvinculados do Prodeem, centenas de sistemas fotovoltaicos foram instalados pelas concessionárias de energia elétrica com apoio de organismos internacionais.

Em inspeção realizada pela CGU foi verificado que, dos 1.029 sistemas avaliados instalados pelo Prodeem, somente 23% estavam funcionando e 45% foram dados como inexistentes. Vivi situação inusitada nessa época, quando, por ocasião de uma visita a uma comunidade, uma senhora me serviu um copo d'água em uma bandeja que ostentava com muito orgulho a qual, em verdade, era uma placa fotovoltaica.

Um legado do Prodeem pouco conhecido foi a criação do Centro de Formação de Recursos Humanos em Fontes Renováveis de Energia localizado na Fazenda Experimental da Universidade Federal do Amazonas, que tive a oportunidade de coordenar. 

Embora a mudança no governo federal tenha afetado fortemente a continuidade da ação, valendo-se de recursos captados em diversas fontes, diversos projetos de P&D foram desenvolvidos e dezenas de recursos humanos foram qualificados valendo-se da infraestrutura implantada, sendo a mesma ampliada com o passar dos anos, embora careça de investimentos na atualidade para manutenção e modernização.

Luz para Todos, falhas e legado

Visando antecipar o atendimento de comunidades isoladas, o governo federal instituiu o Programa Luz para Todos, via decreto no 4.873/2003. O programa foi apresentado à sociedade como um instrumento de desenvolvimento e inclusão social. 

Após mais de vinte anos o programa apresenta como legado o suprimento elétrico de milhares de pessoas, porém, com indicadores que não ajudam a defender, no cenário amazônico, os objetivos propostos, além de frequentes queixas de usuários quanto a quantidade e qualidade da energia ofertada. 

Registre-se que predominou a extensão de redes elétricas supridas por termelétricas a óleo diesel, ampliando significativamente as emissões de gases de efeito estufa.

Um projeto bem sucedido

O governo federal, ciente que o grande desafio da universalização estaria na região amazônica, lançou o Edital CT-Energ 03/2003, objetivando desenvolver experiências inovadoras para suprimento elétrico de comunidades isoladas na Amazônia que fossem sustentáveis e replicáveis, as quais serviriam de modelo para as ações das concessionárias.

O projeto intitulado Modelo de Negócio em Comunidades Isoladas da Amazônia ou Projeto Neram, foi um dos projetos contratados, o qual tive a felicidade de concebê-lo e coordenar sua execução. O modelo de negócio proposto foi alicerçado nos seguintes pilares: 

  • governança (constituição de cooperativa e capacitação local); 
  • geração de emprego e renda (construção de agroindústria de polpa de açaí, maracujá e goiaba); 
  • uso de energia renovável (gaseificação do caroço de açaí); 
  • diversificação da produção (produção de farinha de peixe e farinha de mandioca em  comunidades distintas da que foi implantada a agroindústria de polpas). 

Apesar do sucesso do projeto, este não recebeu o apoio para assegurar sua sustentabilidade e replicação, não sendo apresentado, a exemplo de outros projetos desenvolvidos à época, como cases de sucesso a serem seguidos pelas concessionárias. Informações mais detalhadas sobre essa experiência podem ser obtidas no site do CDEAM na área de artigos publicados. 

Os avanços no arcabouço regulatório setorial tornam o modelo de negócio proposto ainda mais atrativo, salientando que é possível implementá-lo valendo-se de qualquer tecnologia de energia renovável.

Mais tentativas em 2020 e 2023

Em 2020, sem extinguir o Luz para Todos, o governo federal lançou o Programa Mais Luz para a Amazônia, objetivando o suprimento elétrico de regiões remotas dos estados da Amazônia Legal, preconizando o desenvolvimento social e econômico destas comunidades.

O projeto foi alicerçado, fundamentalmente, no uso de sistemas fotovoltaicos. A pandemia do Covid 19 comprometeu fortemente as metas do projeto. Além disso, não ficou claro como se daria as ações de desenvolvimento social e econômico.

Em 2023, o governo federal lançou o Programa Energias na Amazônia, prometendo garantir a qualidade e segurança no suprimento elétrico de 3,1 milhões de pessoas. Sobre esse programa, ainda não há resultados passíveis de avaliação.

O histórico das ações governamentais evidencia equívocos que se repetem comprometendo seriamente os resultados almejados pelas populações amazônicas. Dentre os equívocos destaca-se a falta de um programa de desenvolvimento regional que alicerce as ações de suprimento elétrico. Mas o que se vê é uma inversão do processo onde espera-se que a eletrificação leve ao desenvolvimento. 

Assim, vamos encontrar sistema fotovoltaico em domicílio em que seus moradores fazem uso de fossa negra e cozinham em fogão a lenha, comprometendo a qualidade de vida dos usuários, sem que a energia gerada proporcione agregação de renda. 

Também chama a atenção a adoção de soluções tecnológicas que não oportunizam a internalização de cadeias produtivas, como seria o caso do uso de recursos de biomassa. Diversas são as biomassas disponíveis na região, seja para produção de pequenas quantidades de energia como a solução apresentada no projeto Neram, seja para transformar a realidade do cenário energético regional, como as biomassas passíveis de serem convertidas em bioetanol. Inclusive uma experiência desenvolvida na região com bioetanol de mandioca será objeto de um de nossos artigos.  

Convém observar ainda a inexpressiva participação de estados e municípios na concepção e implementação dos programas, dado o total desaparelhamento desses entes federados para fazer frente a esta problemática. 

A leitura equivocada do desafio e/ou a busca de resultados imediatistas, continua a relegar milhares de pessoas à miséria energética e socioeconômica, apesar de residirem em uma região rica por natureza.

 [Veja o primeiro artigo desta série aqui 

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