Opinião

Impactos da decisão STJ em Contratos de Energia e Project Finance

Tese vinculante que estabelece a Selic como único índice aplicável a contratos sem cláusula específica de correção toca diretamente na previsibilidade e estabilidade que o mercado de infraestrutura energética tanto valoriza. Mas há senões.

Por Arthur Lobo

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Imagine uma geradora de energia que estruturou um contrato de venda de longo prazo no mercado livre, precificou seus riscos com base em índices setoriais tradicionais como IGP-M, modelou fluxos de caixa para garantir o pagamento de debêntures incentivadas e, de repente, descobre que todas as suas disputas judiciais sobre inadimplemento contratual serão corrigidas por um índice completamente diferente do previsto.

Não importa se a usina está em São Paulo, no Paraná ou no Rio Grande do Sul. Não importa se o contrato foi assinado em 2018 ou 2023. A partir de agora, quando não houver cláusula específica sobre correção, existe apenas um denominador comum: a taxa Selic. Essa é a nova realidade que o Superior Tribunal de Justiça impôs ao setor elétrico brasileiro em 15 de outubro último, quando julgou por unanimidade o Recurso Especial nº 2.199.164/PR, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, fixando tese vinculante no Tema 1.368 dos recursos repetitivos.

A decisão vai além do que o mercado de energia esperava. Não se trata apenas de uniformizar critérios para disputas futuras, mas de aplicar retroativamente a Selic como índice obrigatório para juros de mora e correção monetária em dívidas civis, inclusive para processos iniciados antes da Lei 14.905/2024.

Com isso, encerra-se uma disputa jurídica que se arrastava há mais de vinte anos e que transformava a avaliação de passivos contingentes em projetos de geração, transmissão e distribuição em verdadeiro exercício de incerteza.

Até então, o cenário era fragmentado de forma preocupante para quem estrutura operações de infraestrutura energética. Uma geradora que obtivesse sentença favorável em 2020 para receber indenização por inadimplemento de contrato de compra e venda de energia no Ambiente de Contratação Livre, o ACL, enfrentava critérios completamente distintos conforme a jurisdição.

O Tribunal de Justiça de São Paulo aplicava IPCA-E mais juros de 1% ao mês. No Paraná, outro tribunal utilizava IGP-M mais a mesma taxa de juros. No Rio Grande do Sul, alguns juízes já adotavam a Selic por conta própria. Essa fragmentação não era apenas inconveniente para o departamento jurídico, era estruturalmente problemática para a modelagem financeira de projetos.

Empresas de geração, transmissão e distribuição com contratos judicializados em múltiplos estados simplesmente não conseguiam prever com precisão quanto efetivamente receberiam. A avaliação de recebíveis em disputa judicial variava radicalmente conforme o tribunal e o mercado de project finance, tão dependente de fluxos de caixa previsíveis e estáveis, operava com deságios elevados devido a essa imprevisibilidade sistêmica.

A uniformização promovida pelo STJ muda radicalmente esse quadro. A Selic, taxa básica da economia brasileira que já incorpora correção monetária e juros em um único índice, torna-se o padrão nacional obrigatório. Acabou a cumulação de índices distintos e as discussões intermináveis sobre qual taxa de inflação aplicar ou qual percentual de juros somar separadamente.

Se uma dívida de cem mil reais, referente a inadimplemento de contrato de fornecimento de energia, está em discussão judicial desde 2022, a atualização será feita exclusivamente pela Selic acumulada no período. Ponto final. A simplificação operacional é evidente e bem-vinda.

O fundamento econômico da decisão tem lógica particular para o setor de infraestrutura. O STJ argumenta que permitir remuneração superior à Selic nas relações civis criaria uma distorção inaceitável no sistema econômico. Os próprios bancos e fundos de investimento, ao captar e emprestar recursos para financiamento de projetos de geração eólica, solar, hidrelétricas e linhas de transmissão, estão vinculados a essa taxa como referencial básico.

Um credor civil não pode ter direito a rendimento estruturalmente maior do que o sistema financeiro oferece. Isso violaria a lógica macroeconômica e criaria incentivos perversos que desestabilizariam o mercado de capitais.

A decisão promove, assim, harmonia entre as obrigações públicas e privadas, alinhando disputas contratuais à mesma taxa que rege captações via debêntures incentivadas da Lei 12.431/2011 e financiamentos do BNDES.

Mas nem tudo será aplicado de forma absoluta e aqui reside o ponto crucial que gestores de contratos, departamentos jurídicos e áreas de relações com investidores precisam compreender com precisão. A decisão do STJ respeita dois pilares fundamentais do direito, que são especialmente relevantes para contratos de longo prazo no setor elétrico: a coisa julgada e a autonomia da vontade.

Primeiro, se o título judicial já transitou em julgado com previsão de outro índice de correção, ele prevalece integralmente e nada será alterado. Exemplo concreto: uma transmissora obteve sentença definitiva em 2023 determinando correção pelo IPCA mais juros de 1% ao mês em ação indenizatória sobre atraso na conclusão de obras de subestação que impactou a Receita Anual Permitida. Essa decisão não será tocada.

A coisa julgada é intangível e a nova tese do STJ não tem efeito rescisório. Ela se aplica apenas a processos em curso, sem decisão definitiva, o que é fundamental para o planejamento de provisões contábeis.

Segundo, e talvez ainda mais importante para o setor energético, quando o próprio contrato de compra e venda de energia, contrato de concessão, contrato EPC de construção de usinas ou contrato de operação e manutenção estabelece expressamente juros e correção monetária, prevalece integralmente o pactuado. O princípio do pacta sunt servanda permanece intocado.

Se um contrato de fornecimento de energia de longo prazo no ACL prevê que, em caso de inadimplemento, haverá correção pelo IGP-M, índice tradicionalmente usado no setor por refletir melhor a inflação de commodities e energia, e juros de 2% ao mês, essa cláusula será respeitada sem ressalvas. A decisão do STJ incide apenas quando não há convenção expressa entre as partes sobre o tema.

O artigo 406 do Código Civil é claro ao estabelecer que se aplica a taxa legal “quando os juros moratórios não forem convencionados”. A autonomia privada é preservada, o que é absolutamente fundamental para contratos de longo prazo no ACL, contratos EPC de construção de usinas que podem ultrapassar um bilhão de reais, contratos de concessão que se estendem por trinta anos e parcerias público-privadas em transmissão e distribuição.

Para o departamento financeiro, controladoria e área de relações com investidores de uma empresa do setor elétrico, a mudança traz algo valioso: previsibilidade real. Provisões contábeis para contingências judiciais relacionadas a disputas contratuais, atrasos em cronogramas de obras, discussões sobre reequilíbrio econômico-financeiro de concessões e inadimplementos no mercado livre tornam-se muito mais precisas e auditáveis.

A Selic é uma taxa pública, de fácil acesso, acompanhamento transparente e verificação por auditores independentes. Não há mais necessidade de consultar múltiplos índices regionais ou interpretar jurisprudências divergentes de dezenas de tribunais estaduais. A gestão de risco jurídico melhora significativamente e relatórios obrigatórios à Aneel, sobre disputas contratuais, e à CVM, sobre passivos contingentes que possam afetar investidores, terão finalmente critério uniforme de atualização.

No mercado de project finance, debêntures incentivadas e operações estruturadas de financiamento de infraestrutura, a padronização pode fomentar negociações que antes eram travadas pela incerteza sobre desfechos judiciais.

Investidores institucionais e fundos de investimento em infraestrutura que financiam projetos de geração renovável terão muito mais segurança para precificar riscos contratuais decorrentes de possíveis inadimplementos ou disputas.

O deságio aplicado em operações de antecipação de recebíveis judicializados tende a diminuir naturalmente com a redução da incerteza. Isso beneficia diretamente empresas que desejam antecipar créditos em litígio para reforçar caixa ou investir em expansão.

Para operações de fusões e aquisições no setor elétrico, notoriamente complexas pela quantidade de contratos de longo prazo envolvidos, a avaliação de passivos contingentes ganha critério uniforme e transparente, potencialmente reduzindo ajustes de preço de aquisição durante processos de due diligence.

Contudo, existe um ponto de atenção significativo que merece reflexão das áreas de planejamento financeiro e gestão de riscos. A Selic é volátil por natureza e responde a decisões de política monetária do Banco Central. Em períodos de juros baixos, como ocorreu entre 2017 e 2020, quando a taxa chegou a apenas 2% ao ano, a remuneração de créditos judicializados pode simplesmente não cobrir integralmente a inflação setorial, que no setor elétrico muitas vezes segue o IGP-M, índice historicamente mais sensível a variações de commodities, tarifas de energia e câmbio, nem o custo de oportunidade do capital imobilizado em litígios que poderiam estar financiando novos projetos de geração.

O próprio acórdão do STJ prevê uma válvula de escape importante para essas situações: o artigo 404 do Código Civil permite expressamente ao juiz conceder indenização suplementar se os juros moratórios não cobrirem o prejuízo efetivamente comprovado. Essa ressalva, porém, pode gerar uma nova onda de litígios setoriais.

Empresas de geração, transmissão e distribuição podem passar a pleitear indenização adicional demonstrando tecnicamente que a Selic, em determinados períodos, não cobriu custos de oportunidade específicos e mensuráveis do setor energético, como perda de oportunidades de investimento em novos projetos com retornos regulados pela Aneel ou perda de janelas de contratação no mercado livre.

A discussão jurídica se desloca do índice de correção propriamente dito para a suficiência econômica da indenização, o que mantém margem considerável para insegurança e complexidade probatória.

A aplicação retroativa da decisão merece reflexão particularmente cuidadosa em um setor caracterizado por contratos de longuíssimo prazo. Contratos de concessão de geração e transmissão, que frequentemente se estendem por 15, 20 ou até 30 anos, e parcerias público-privadas em distribuição serão concretamente impactados.

Um concessionário que em 2021 provisionou e modelou receber R$ 150 mil reais com base em IPCA mais juros de 1% ao mês em disputa judicial complexa sobre reequilíbrio econômico-financeiro de concessão, tema recorrente após choques tarifários ou mudanças regulatórias, pode agora ter valor substancialmente diferente com a aplicação retroativa da Selic.

Dependendo do período específico analisado e da oscilação histórica das taxas de juros, pode haver ganho significativo ou perda material que impacte diretamente o valuation do projeto.

Essa mudança nas regras do jogo, embora tecnicamente justificada pela necessidade imperiosa de uniformização jurisprudencial nacional, toca diretamente na previsibilidade e estabilidade que o mercado de infraestrutura energética tanto valoriza e que constitui premissa básica para atração de investimentos de longo prazo, especialmente capital estrangeiro.

O STJ fundamenta juridicamente a aplicação retroativa argumentando que se trata de mera interpretação do artigo 406 do Código Civil, norma que existe desde 2002. O que muda agora é apenas a sua interpretação uniforme e vinculante pelo Judiciário, não se tratando tecnicamente de aplicação retroativa de lei nova, mas sim da definição definitiva do sentido correto de lei antiga que já estava em vigor.

Esse argumento é juridicamente robusto e dificilmente será revertido em instâncias superiores. Mas, do ponto de vista econômico, de modelagem financeira de projetos e de precificação de riscos em operações estruturadas, o efeito prático é funcionalmente idêntico ao de uma mudança legislativa superveniente: alteração concreta e não antecipada de expectativas que já estavam consolidadas em modelos financeiros, balanços auditados e projeções apresentadas a investidores e credores.

Vale destacar que a decisão consolida entendimento que já vinha sendo construído pelo próprio STJ em outras matérias. Nos Temas 99, 112 e 113 de recursos repetitivos, a Primeira Seção já havia definido que a Selic é a taxa legal referenciada no artigo 406 do Código Civil. Além disso, a Corte Especial do STJ havia decidido nesse sentido em 2008 no julgamento do EREsp 727.842/SP e reafirmou o entendimento em 2024 no REsp 1.795.982/SP. Este último foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal ao desprover o RE 1.558.191/SP em setembro de 2025, chancelando definitivamente a aplicação da Selic para relações civis em geral, o que inclui naturalmente contratos do setor energético.

A decisão do STJ representa um marco inegável na evolução do direito civil brasileiro e alinha o Judiciário à realidade econômica contemporânea com precisão técnica. Promove isonomia entre setores econômicos e simplificação em área que há décadas clamava por uniformidade nacional.

Para empresas de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia, a mensagem é cristalina: a Selic é agora o denominador comum das obrigações civis não convencionadas expressamente em contratos e todo planejamento financeiro, jurídico e de relações com investidores deve incorporar imediatamente essa nova realidade nas provisões, modelagens e relatórios regulatórios.

O desafio, contudo, permanece presente e não deve ser subestimado. A segurança jurídica, elemento essencial para investimentos bilionários em infraestrutura de longo prazo, não se constrói apenas com uniformização de índices de correção, por mais necessária e tecnicamente correta que seja. Ela exige também respeito consistente às expectativas legítimas criadas e à estabilidade das relações contratuais passadas, especialmente em contratos de concessão e project finance que sustentam investimentos de dezenas de bilhões de reais em infraestrutura energética essencial para o país.

A decisão é tecnicamente impecável do ponto de vista jurídico e economicamente defensável. Mas seria ingênuo ignorar que a uniformidade conquistada no presente gera incertezas concretas e quantificáveis sobre o passado que ainda produz efeitos financeiros materiais em balanços e fluxos de caixa projetados.

O direito e a economia da energia caminham necessariamente juntos, sempre dependeram um do outro para funcionar, e ambos dependem de um elemento essencial que não se decreta por acórdão judicial: a confiança dos investidores.

A decisão fortalece inequivocamente a previsibilidade futura de novos contratos e litígios.

Resta saber se o custo da transição, especialmente o impacto em disputas antigas ainda não julgadas definitivamente, será absorvido sem abalos significativos pela indústria de energia elétrica e pelo mercado de project finance que financia sua expansão.

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