Opinião
Aspectos jurídicos relacionados ao transporte de etanol via dutos
O etanol é um biocombustível de origem biológica (não fóssil), produzido a partir da biomassa e/ou da fração biodegradável de resíduos. A despeito do fato de o Brasil despontar como o segundo maior produtor de etanol mundial – vindo atrás somente dos EUA –, é pacífico o entendimento de que o custo do etanol produzido a partir da cana-de-açúcar é pelo menos três vezes menor do que o do etanol produzido a partir do milho norte-americano. Com efeito, se fosse possível desconsiderar as barreiras tarifárias atualmente impostas para a entrada do produto nos mercados internacionais, o custo do etanol produzido no Brasil seria, hoje, o menor do mercado.
Além do custo reduzido, especialistas afirmam que o Brasil dispõe de uma grande área de terras não cultivadas, longe da fronteira amazônica, o que, per se, deveria garantir o aumento da região destinada ao plantio da cana para a produção do etanol. Entretanto, graças às novas tecnologias de aproveitamento seria possível a indústria brasileira aumentar a produção de etanol sem aumentar o uso de terras.
Tais fatos sugerem que o Brasil dispõe das principais características para liderar o mercado de produção mundial de etanol, o que gera uma expectativa bastante otimista por parte dos técnicos do setor, que chegam a afirmar que, se forem cumpridas determinadas metas tecnológicas, até 2030 o país poderia produzir aproximadamente 20% do etanol consumido em todo o planeta. O cenário é, sem dúvida, promissor para os investimentos nesta área.
A despeito do cenário otimista, é certo afirmar que, além das barreiras tarifárias, há algumas relevantes lacunas normativas que afetam fases distintas da cadeia de produção de etanol no Brasil. Uma delas refere-se à sua movimentação via dutos, a qual deflagra várias questões.
A primeira delas é relativa à competência para regular a matéria. A despeito de a Lei 9.478, de 6/8/97 (Lei do Petróleo), estabelecer, no seu art. 8º, inc. V, que é função da ANP “promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: [...] V – autorizar a prática das atividades de refinação, transporte, importação e exportação na forma estabelecida nesta lei e sua regulamentação”, o entendimento que parece prevalecer atualmente é aquele que atesta que a agência é competente, tão somente, para regular a movimentação de “petróleo, seus derivados e gás natural”, afastando, por conseguinte, o biocombustível.
Partindo de tal premissa, a pretensa inexistência de uma regulação específica concernente à movimentação, via duto, de álcool combustível ou de qualquer outro biocombustível foi corroborada pela própria Procuradoria Geral da ANP, por meio da Nota 211/2007. Naquela ocasião, a Procuradoria afirmou, in verbis: “[...] o exame da legislação incidente à espécie afasta, em absoluto, a possibilidade de qualquer ingerência, por parte desta Autarquia, no tocante ao transporte de álcool ou qualquer outro biocombustível”.
Portanto, caso as normas aplicáveis à matéria não sejam modificadas, as atividades de construção e operação de dutos exclusivos de movimentação de álcool não dependem de outorga de concessão ou de nenhum outro ato administrativo concedido pela ANP.
Caso assim não fosse, a segunda questão que se colocaria em pauta seria aquela referente ao instrumento de outorga do direito de exploração das atividades de construção e operação dos dutos.
Atualmente, em relação à movimentação de álcool via dutos, encontra-se vigente a Lei 7.092/82, que estabelece que “a construção e operação de alcooldutos serão objeto de concessão da União, conforme estabelecido no regulamento desta Lei [...]”. Ocorre, porém, que, devido à inexistência do mencionado regulamento, o dito dispositivo não é aplicável.
Com efeito, considerando o cenário atual, é possível afirmar que, hoje, o agente interessado em construir um duto para movimentação exclusiva de álcool (duto dedicado) não estaria sujeito à autorização/concessão da Administração Pública, salvo quanto à obtenção da licença ambiental – atentando para o fato de que o licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidor ou degradador do meio ambiente.
Em relação ao licenciamento ambiental, faz-se mister esclarecer, ainda, que o órgão competente deverá conceder as licenças prévia (LP), de instalação (LI) e de operação (LO), e que, via de regra, condiciona tais atos administrativos à comprovação da capacidade do interessado para operar dutos de movimentação de gases ou líquidos.
Assim, é conclusivo admitir que, considerando a manifesta e confessa incompetência da ANP para regular a movimentação de álcool via dutos exclusivos, o(s) construtor(es) e operador(es) não estaria(m) submetido(s) aos conceitos e princípios que afetam o setor de petróleo, seus derivados e gás natural, entre eles o livre acesso. Ao mesmo tempo, não gozariam da prerrogativa relativa à desapropriação dos terrenos afetados, liderada pela ANP, para os casos de passagem de dutos de movimentação de gás natural, petróleo e seus derivados.
A agência, contudo, já informou mais de uma vez que tem competência para outorgar autorizações para os interessados em construir e operar as instalações classificadas como polidutos (aquelas não restritas à movimentação de um único produto). Com efeito, a terceira questão que se coloca é a da possibilidade de a ANP conceder autorização para dutos que movimentam álcool de forma não exclusiva (polidutos).
Neste caso, a empresa interessada em construir e operar polidutos deveria submeter pedido de autorização perante o órgão regulador, nos termos da Portaria ANP 170/98, devendo atentar, especialmente, para dois elementos fundamentais: (i) esclarecer o primeiro produto que seria escoado via duto (no caso específico, o álcool), e (ii) comprovar da capacitação operacional para movimentação em dutos, o que serve também para efeitos de licenciamento ambiental.
Em termos societários, é indicada a criação de uma sociedade de propósito específico (SPE), para o caso de mais de uma empresa se interessar pela atividade de construção e operação do duto (tal estruturação já foi aprovada pela ANP em casos de sua, inclusive, competência). Também nessa circunstância é determinante a comprovação da capacitação operacional da empresa operadora indicada pela SPE, tanto para efeito de uma suposta outorga da autorização da ANP quanto para o licenciamento ambiental. Na prática, considerando as autorizações até hoje outorgadas pela ANP – para construção e operação de dutos de movimentação de gás natural, petróleo e seus derivados –, podemos afirmar que essas autorizações foram realizadas em nome (incluindo na condição de operadores) das maiores transportadoras (Transpetro e TBG) e distribuidoras atuantes no Brasil.
Por fim, a quarta questão a ser discutida refere-se à possibilidade de produtores obterem autorização para construir e operar dutos para movimentação preferencial de seus insumos. Neste sentido, entendemos que não há norma que impeça que um produtor de líquidos (no caso em debate, de álcool) construa e opere os mencionados dutos, desde que comprove sua capacidade operacional para tanto.
De fato, a regra que estabelece que a autorização para construção e operação seria concedida apenas à pessoa jurídica cujo objeto social contemplasse, de forma exclusiva, tal atividade, afeta, tão somente, os dutos classificados pelo regulador como de transporte de gás natural, o que excluiria o transporte de álcool via duto.
Por fim, é oportuno lembrar que hoje já existe um projeto de lei que atribui competência à ANP para autorizar a construção e operação de dutos para movimentação de álcool, bem como para regular a própria movimentação. Caso essa legislação passe a vigorar quando já tiverem sido construídos dutos para movimentação de álcool, a agência poderá exigir o enquadramento destes às novas regras, como já ocorreu no passado com os gasodutos.
Daniela Santos é advogada do escritório L.O. Baptista Advogados