Opinião
Decodificando legados
O que me chama a atenção na transição para os novos tempos sob a égide do Trumpismo não é o show de horrores das “tuitadas” irresponsáveis e sim a dificuldade de haver uma interpretação serena sobre o legado dos oito anos da administração Obama.
A cobertura, os artigos e editoriais da imprensa que vale a pena prestar atenção, tendem a tecer um mosaico e não uma visão do conjunto da obra e do “estado das coisas”.
“O Estado das Coisas” (entre aspas) remete, metaforicamente, ao filme de Wim Wenders de 1982, uma complexa reflexão sobre as diferenças culturais, sociais e metafísicas entre os EUA e a Europa na forma de um filme dentro do filme, um meio que Wenders utilizou para exorcizar os problemas enfrentados durante a produção de “Hammet”, na minha opinião, uma pequena obra prima de filme noir subestimada pela crítica.
Em “Survivors” (o filme dentro do filme “O Estado das Coisas”), os personagens fogem em busca de um lugar no qual possam escapar do derretimento, algo que o líder do grupo sabe que não existe. Só que as filmagens são interrompidas porque acabou o negativo, o produtor desaparece e a equipe se dispersa em um hotel fantasmagórico.
Como destaca o crítico Cesar Zamberlan, “...o universo dos personagens, no cinema atuando e guiados, e, fora dele, sem papel e à deriva, acaba servindo como uma metáfora para as relações entre o mundo ficcional do cinema e a vida fora dele.”
Relembrando uma das falas de Gordon, o produtor do filme dentro do filme, “a vida passa com o correr do tempo, sem precisar se transformar em histórias”, mas “fazer cinema não é mostrar a vida passando”.
Nem fazer “cinema”, nem fazer “política”, em especial “políticas públicas”, tanto no plano das relações internacionais (o legado Obama pós Trump), como no plano das “políticas comezinhas”, caso das políticas energéticas em Pindorama, país do futuro.
Este é o ponto crítico da metáfora sobre o “estado das coisas”: qual o legado que será recebido no novo ano da graça de 2017 pelas políticas energéticas brasileiras?
O lugar comum de que ainda vivemos sob o legado e as consequências da MP 579 pode ser verdadeiro, mas não é suficiente. Depois de quatro anos de grande instabilidade econômico-financeira e de ajustes pontuais no quadro legal e regulatório, falta um “norte”, um quadro lógico que, partindo de um diagnóstico objetivo e quantitativo, indique claramente qual o sentido e direção das políticas públicas setoriais, priorizando e calendarizando os passos a serem seguidos pelos atores públicos e privados.
A nova administração federal, após o impeachment, assumiu uma postura mais realista sobre os problemas de fundo identificados, mesmo que não se possa afirmar que esse realismo tenha se materializado em soluções estruturais e sim em ações conjunturais, seguindo o padrão da administração anterior. É um bom indicativo, mas é suficiente para normalizar o ambiente de negócios energético?
O único fato novo, que traz alento, foi a aprovação pela Diretoria Colegiada da ANEEL em 12/07/2016, com o apoio do MME, da Chamada de Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento – P&D Estratégico nº 20/2016, “com o objetivo de aprimorar o ambiente de negócios do Setor Elétrico Brasileiro e propor subtemas de relevância que exijam esforço conjunto e coordenado de empresas de energia elétrica e instituições de pesquisa”. De acordo com a Aneel, a motivação para a discussão do modelo atual, estabelecido na Lei 10.848/2004, decorre dos avanços tecnológicos nas áreas de geração distribuída, veículos elétricos, armazenamento de energia, telecomunicações e processamento de dados, além das questões comerciais e papel mais ativo dos consumidores nas decisões do setor.
É um bom indício, parafraseando Antonio Gramsci: “a velha ordem está morrendo, mas a nova ordem ainda não nasceu. Nesse interregno, surge uma grande diversidade de mórbidos sintomas”.
Infelizmente, um dos “sintomas” é que sem uma matriz de quadro lógico, que nos guie de onde estamos e para aonde vamos, continuaremos a testemunhar “a vida passando com o correr do tempo”, mas sem respostas para por quanto tempo ainda estaremos prisioneiros da velha ordem, que resiste a morrer.
Está faltando uma parada para arrumação da carga, antes de seguir viagem.
Eduardo José Bernini, é mestre em políticas públicas pela FGV-SP e MBA em Governança Corporativa