Opinião
Enfrentando o desafio
O setor elétrico está diante de grandes transformações. Avanços tecnológicos tornam a exploração de fontes renováveis – inclusive em pequena escala no ponto de consumo – cada vez mais competitivas, enquanto a introdução de redes inteligentes e de tecnologias de armazenamento proporcionam soluções para a variabilidade da produção e do consumo.
Grandes mudanças institucionais também estão em curso. A sustentabilidade das estatais tem sido comprometida pelo patrimonialismo, fisiologismo e corporativismo. O mercado de energia também apresenta sinais de esgotamento, com crescente judicialização.
Diante de tantas transformações, que invariavelmente abalarão o status quo, torna-se imperativo tomarmos as rédeas do nosso destino, buscando construir soluções estruturais para lidar com as transformações em curso antes que se tornem grandes problemas. Caso contrário, seremos condenados a viver “apagando incêndios” do momento, acrescentando ainda mais remendos à colcha de retalhos que se tornou o marco regulatório do setor elétrico.
Na abertura da conferência bienal “Brazil Energy Frontiers 2017”, realizado em setembro, em São Paulo, o Secretário Executivo do Ministério de Minas e Energia, Paulo Pedrosa, convocou os líderes do setor elétrico brasileiro a fazer exatamente isso: enfrentar “o desafio de nossa geração” (fazendo referência as palavras do ministro em artigo publicado no Correio Brasiliense, 11/ago/2017).
Diante da nova realidade que se impõe, Pedrosa argumentou que novos modelos setoriais e de negócios tornam-se necessários. Essa é a tônica que levou o governo a propor mudanças no arcabouço legal do setor elétrico, iniciada com as Consultas Públicas 32 e 33 deste ano.
Os agentes, por sua vez, responderam ao desafio do Secretário com três ricos debates nos quais procurou-se diagnosticar as raízes dos problemas e apontar caminhos para a sua solução (vide as apresentações do evento em www.brazilenergyfrontiers.com/programacao e os vídeos de todo o evento em www.acendebrasil.com.br/videos).
O acúmulo de problemas que vêm assolando o setor nos últimos anos mostra que os problemas não são meramente conjunturais. Dentre a grande gama de problemas destacam-se: (i) os atrasos e sobrecustos na implantação de novos empreendimentos devido a imprevistos, sendo que muitos deles fogem do controle do empreendedor; (ii) o desequilíbrio econômico-financeiro sofrido pelas concessionárias que tiveram suas concessões renovadas segundo a Lei 12.783 (MP 579), resultando numa imediata – e drástica – queda de suas receitas tarifárias e postergação do pagamento das indenizações devidas ano após ano; (iii) a produção hidrelétrica muito inferior à sua Garantia Física por uma série de fatores que extrapolam a questão da disponibilidade hídrica; (iv) a deterioração das condições financeiras das distribuidoras em função do descasamento temporal entre receitas e despesas relacionadas à aquisição de energia elétrica para os consumidores regulados; e (v) distorções e ineficiências provocadas pela precificação e despacho definido por modelos computacionais ultrapassados e que utilizam dados de entrada definidos de forma administrativa.
Embora os problemas sejam de naturezas muito diferentes, as suas raízes são as mesmas: as discrepâncias que surgem entre a concepção e a sua realização (daí o tema “Da Prancheta para a Realidade” que deu o tom da parte da manhã do congresso).
O arranjo comercial-regulatório hoje em vigor no Brasil tem muita dificuldade para se ajustar à realidade que se impõe em função: (i) da preponderância de compromissos de longuíssimo prazo, estabelecidos com base em estimativas e simulações realizadas antes mesmo dos empreendimentos serem construídos; e (ii) do alto grau de centralização das decisões imposto pela operação e precificação centralizadas.
Essas características facilitam o financiamento da expansão e a coordenação da operação, mas a um custo elevado em função do engessamento comercial e operacional. Nesse contexto, mudanças necessárias de ajuste às condições vigentes tornam-se muito difíceis ou custosas para serem implementadas.
Diante desse diagnóstico de problemas, é clara a necessidade de se adotar uma arquitetura de mercado que propicie uma gestão ativa desses riscos.
Isso requer uma clara delimitação de direitos e deveres entre os agentes e a adoção de uma estrutura que proporcione a autonomia necessária para que cada agente possa gerir os riscos assumidos. Também requer o estabelecimento de mecanismos de mercado que remunerem os agentes em função do seu efetivo desempenho e do seu efetivo valor para o sistema.
Uma forma de alcançar esse objetivo é a adoção de um mercado em que os preços e o despacho sejam balizados por lances de oferta submetidos pelos agentes. Esse mecanismo proporcionaria a autonomia necessária aos agentes para gerirem seus próprios riscos. Também ofereceria uma estrutura de incentivos mais propícia para os agentes buscarem ganhos de eficiência produtiva e para o desenvolvimento de modelos de otimização da operação do sistema.
Esse tema tem sido explorado no projeto de pesquisa e desenvolvimento “Arquitetura de Mercado: Análise, Simulação e Propostas” financiado pela EDF, EDP e Energisa. O projeto esboça dois arranjos de mercado que poderiam ser adotados: o “Modelo Indutor” e o “Modelo Integrador”. Seja qual for o caminho escolhido, ressalta-se que é imprescindível estabelecer salvaguardas para assegurar a adequação da oferta à demanda por meio de mecanismos que repartam o custo da confiabilidade do sistema de forma equânime entre todos os consumidores do sistema – sejam eles consumidores regulados ou livres.
Outro aspecto que requer atenção é o risco de abuso de poder de mercado. Em concorrência perfeita, as funções objetivo de maximização do lucro e de minimização do custo, ambas condicionadas a um mesmo nível de confiabilidade, obtêm resultados muito próximos, se não idênticos. Divergências podem surgir, no entanto: (a) quando a estrutura de mercado torna-se muito concentrada, levando os agentes maiores a exercer o seu poder de mercado para elevar preços por meio de restrição de sua oferta; e (b) em situações específicas quando o poder de mercado do agente é alavancado por restrições elétricas.
Simulações dos agentes utilizando o conceito de equilíbrio Cournot-Nash (equilíbrio segundo o qual cada produtor define estrategicamente a quantidade que deseja ofertar levando em conta o comportamento esperado dos demais produtores e em que o preço de equilíbrio é definido em função da quantidade agregada ofertada) sugerem que a estrutura de mercado atual é relativamente competitiva e que, com poucas mudanças, poderia se tornar suficientemente competitiva para disciplinar preços aos patamares do mercado regulado. A análise levou em conta os interesses financeiros e o poder de controle dos principais grupos econômicos com base na estrutura acionária de todas as usinas hidrelétricas no país, levando em conta o fato de que a operação de muitas usinas hidrelétricas a fio d’água é, em grande parte, controlada por hidrelétricas com reservatórios rio acima (a montante).
No entanto, independentemente da estrutura de mercado, é necessário implantar processos de monitoramento para coibir o abuso de poder de mercado em situações específicas. Também é necessário estabelecer mecanismos que promovam a contratação de longo prazo uma vez que este tipo de contratação é essencial para: (i) proporcionar estabilidade ao sistema; (ii) facilitar o financiamento da expansão; e (iii) coibir o abuso de poder de mercado.
A adoção de uma nova arquitetura de mercado de energia não é uma mudança trivial. É empreitada que precisa ser implementada com muito cuidado, mediante muitos estudos e análises, contando sempre com a liderança das autoridades setoriais para que todo o processo seja conduzido com transparência e diálogo. Por mais difícil que seja, é preciso enfrentar o desafio.
Como diz o ministro Fernando Coelho Filho; “precisamos todos ter a maturidade para, juntos, construir o futuro”. Pois o futuro virá, estejamos prontos ou não.
Claudio J. D. Sales e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil.