Opinião

Há erro no cálculo da tarifa?

A coluna bimestral de Jerson Kelman

Por Redação

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Até 2001, as distribuidoras de energia elétrica arcavam com as diferenças, para mais ou para menos, entre os itens de despesas – os preços e as quantidades – previstos nas revisões e reajustes anuais das tarifas para os 12 meses subsequentes, e os correspondentes valores observados ao final desses 12 meses. Pouco antes do fim do racionamento, em 2001, o governo e as distribuidoras chegaram à conclusão de que as concessionárias não deveriam ter lucro ou prejuízo quando exercessem o papel de simples arrecadadoras de receitas para pagamento de despesas não gerenciáveis. Era o caso da compra de energia de Itaipu, que flutuava com a variação do dólar, dos encargos para manutenção da rede básica e dos encargos que permitem os subsídios cruzados entre os consumidores. Ou seja, a inclusão desses itens de despesa na “conta de luz” deveria ser economicamente neutra para as distribuidoras. Para isso, seria necessário realizar correções ex-post dos inescapáveis erros de previsão. Afinal, nem as concessionárias nem a Aneel têm bola de cristal para prever exatamente o que vai ocorrer no futuro.
Com esse entendimento, os ministérios de Minas e Energia e da Fazenda lançaram a Portaria Interministerial MME/MF 025/2002, estabelecendo um componente financeiro, positivo ou negativo, chamado de CVA (Conta de Compensação de Variação de Valores de Itens da parcela A), a ser calculado na data do aniversário de cada distribuidora, olhando-se pelo retrovisor para os 12 meses anteriores. Esse componente financeiro, por sua vez, deve ser incluído no cálculo da receita requerida e da tarifa olhando-se para a frente, para os próximos 12 meses. A portaria determina que a quantificação da CVA seja feita através da comparação entre o fluxo de pagamentos previsto no aniversário anterior e o fluxo de pagamentos efetivamente realizado ao longo dos últimos 12 meses.
Com a edição da Lei 10.848, em 2004, as distribuidoras foram submetidas a regras estritas com relação à compra de energia. Significou perda de liberdade de contratação, que passou a ser feita em leilões organizados pela Aneel. Por outro lado, resultou no direito à neutralidade no repasse dos correspondentes custos. Coerentemente, a portaria foi reeditada para incluir na CVA os custos relacionados à compra de energia. Dessa maneira, o cálculo tarifário aproximou-se da neutralidade no que diz respeito às despesas não gerenciáveis, mas não alcançou a plena neutralidade.
Os contratos de concessão foram assinados nos anos 1990, após aprovação do TCU. Na época não se cogitava neutralidade para nenhuma despesa da concessionária. Pelo contrário: a distribuidora deveria arcar com todos os riscos, inclusive os relativos à variação de quantidade de energia vendida aos consumidores. Nas equações para cálculo do reajuste registradas nos contratos está implícita, embora não enunciada, uma segunda previsão: a de que a venda de energia nos próximos 12 meses será igual à dos últimos 12 meses. Como já dito, no entendimento da época, qualquer variação, para mais ou para menos, seria absorvida pela distribuidora. Portanto, não faria sentido falar em erro de previsão.
Tendo, porém, em vista a mudança conceitual que ocorreu a partir de 2002, quando se passou a perseguir a neutralidade de itens de custo não gerenciável que compõem a parcela A, teria sido desejável modificar a metodologia para corrigir ex-post o inescapável erro de previsão quanto à quantidade de energia a ser vendida nos próximos 12 meses. Melhor ainda: seria desejável corrigir ex-post a diferença entre o fluxo de receitas previsto no aniversário do ano anterior – que por sua vez é proporcional à previsão da venda de energia – e o fluxo de receitas efetivamente realizado para pagamento da parcela A, considerando, inclusive, a inadimplência.
A esse erro de previsão, necessariamente colocado entre aspas porque se trata de uma opção metodológica, alguns membros da CPI da Conta de Luz, seguidos pela imprensa, passaram a chamar de erro de cálculo, o que não procede. Se houvesse erro de cálculo as concessionárias que tiveram receitas observadas nos últimos anos superiores às receitas previstas para custeio dos itens da parcela A deveriam devolver os valores cobrados a mais para os consumidores ou para os fundos que gerenciam os recursos derivados de encargos (CCC, CDE, Proinfa). Por outro lado, as concessionárias e os fundos deveriam receber dos consumidores os valores cobrados a menos.
Entretanto, repito que não houve erro de cálculo, e essas devoluções ou cobranças retroativas não podem ser impostas pela Aneel. Proceder de forma diferente significaria quebra de contratos, com consequente elevação do risco regulatório. Em médio prazo os consumidores sentiriam em seus bolsos o efeito desse retrocesso: ao contrário do que tem sido apregoado, as tarifas ficariam mais altas, e não mais baixas.
Como, felizmente, o Brasil tem apresentado crescimento sustentável, o que faz com que os erros de previsão de receita tendam a beneficiar as distribuidoras, a Aneel cogitou, ainda em 2007, que se fizesse um aditivo contratual para alcançar a neutralidade total da parcela A, naturalmente para vigorar a partir da data da assinatura. Lamentavelmente, no entanto, as sondagens realizadas pela direção da agência com as distribuidoras, representadas pela Abradee, revelaram que a ideia enfrentava resistências.
Como alternativa, e tendo em vista que o prosseguimento da negociação com as distribuidoras se afigurava como um processo longo e com pequena probabilidade de sucesso, a Aneel enviou ao Ministério de Minas e Energia, em outubro de 2008, uma proposta de modificação do texto da portaria. Em síntese, a proposta substituía o conceito de “fluxo observado de pagamentos” pelo de “fluxo observado de receitas”.
Há quem sugira que a Aneel poderia, por sua conta e risco, fazer essa substituição. Essa alegação, porém, não é correta, porque, conforme sustentado pela Procuradoria Federal, significaria violação da regra expressamente estabelecida no art. 2º da portaria, que trata da apuração do saldo da CVA. Explico melhor: a portaria, como atualmente redigida, materializa uma exceção à lei do Real, na medida em que autoriza a consideração, no cálculo tarifário, da variação de preços em intervalo inferior a 12 meses. Mas não autoriza a consideração da variação de receitas (tarifas vezes quantidades). A Aneel propôs nova redação exatamente para que fosse possível fazer essa consideração.
Segundo a cobertura jornalística de uma audiência pública da CPI da Conta de Luz, os dirigentes de distribuidoras teriam manifestado a disposição de aderir à modificação da metodologia de cálculo que a Aneel havia cogitado ainda em 2007. Essa atitude, se confirmada, muda por completo o quadro. Havendo concordância das distribuidoras, seria preferível aprovar um termo aditivo ao contrato de concessão, em lugar de insistir no pedido de uma nova edição da portaria. É o caminho que a Aneel corretamente decidiu trilhar logo após a referida audiência.
Para as distribuidoras que manifestarem a intenção de aplicar de modo retroativo a modificação metodológica materializada em aditivo ao contrato de concessão, possivelmente para reforçar a imagem entre seus consumidores, a Aneel deveria calcular o desconto a ser aplicado voluntariamente nas faturas futuras. Não haveria nenhuma dificuldade na operacionalização dessa suposta compensação porque as distribuidoras sempre podem cobrar menos (não mais) em relação ao limite superior estipulado pela agência. Todavia, o custo da “compensação” deveria recair sobre os acionistas, para que não houvesse nenhum impacto na qualidade da prestação do serviço.

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