Opinião
Hidreletricidade - ambiente regulatório
A coluna bimestral de Jerson Kelman
“Em todos os países em que atuamos os geradores querem melhorar a produtividade, e para isso investem no monitoramento. Aqui não. Por que será?”
Ouvi essa pergunta de um jovem empreendedor, craque em tecnologia, mas iniciante no entendimento do setor elétrico. Ele estava perplexo com a falta de interesse das hidrelétricas em conhecer melhor o funcionamento de seus equipamentos. Expliquei que as geradoras temem que o desempenho real seja pior do que o certificado. Análogo ao comportamento do frequentador do mundo virtual que exibe fotografia de 30 anos atrás, quando era forte e atlético, e não a atual, em que aparece careca e barrigudo.
No ambiente virtual, vale o que está representado, não o que é. Não fosse o receio da perda de garantia física – e, consequentemente, a redução da capacidade de contratar e da participação no MRE –, o que explicaria a relutância da maioria das hidrelétricas em atualizar as curvas cota x área x volume e vazão x potência?
Na União Soviética era parecido. Para o dirigente de uma fábrica de calças, por exemplo, o importante era produzir o número de peças fixado pelo planejamento central. Nem mais nem menos. Se faltasse tecido ou se os trabalhadores estivessem pouco motivados, dava-se um jeito. Talvez utilizando tecido de qualidade inferior ou falsificando o relatório de produção. Faltariam calças para atender à demanda e as existentes rasgariam logo, o que, em médio prazo, agravaria o problema. Mas o dirigente sairia bem na foto. Já o dirigente de uma fábrica de calças em país capitalista só é bem-sucedido se conseguir produzir barato o que os consumidores querem comprar. Para isso, precisa conceber novos produtos, mais atraentes, e novas formas de produção, mais eficientes.
Nosso setor de geração tem alguns traços soviéticos. Há uma forte razão para isso, porque, ao contrário do que pensam os não familiarizados com o assunto, o faturamento mensal de uma hidrelétrica tem pouca relação com a quantidade de energia que tenha sido efetivamente produzida por ela. Depende, isso sim, de uma fração da energia total produzida pelo conjunto das hidrelétricas. E essa fração é proporcional à garantia física da usina, de acordo com as regras do MRE. Assim, o que realmente importa ao administrador de uma hidrelétrica é manter – e se possível aumentar – a sua garantia física. Não necessariamente sua produção.
A peculiaridade existe porque as usinas estão dispostas em cascata ao longo dos rios, e o que é melhor para o país não resulta necessariamente da soma de decisões individuais, tomadas por cada gerador. Ou seja, é preciso impor uma decisão centralizada. Por exemplo, se o dono da usina situada na cabeceira de um rio tivesse a liberdade de estocar água no reservatório em vez de produzir energia, poderia faltar água para passar pelas turbinas das usinas situadas rio abaixo. Por essa razão, é o Operador Nacional do Sistema (ONS) que decide a quantidade de energia que cada hidrelétrica deve produzir. Para isso, o ONS procura minimizar o valor esperado do custo – operativo e de eventuais racionamentos – do sistema interligado. Estima-se que essa operação “centralizada” resulte numa economia para o consumidor, em relação à operação “descentralizada”.
Todavia, há um custo invisível, de difícil mensuração. Sabíamos que esse indesejável efeito colateral poderia ocorrer quando criamos, anos atrás, o MRE, para dar maior segurança às hidrelétricas. Com base na experiência acumulada, porém, considero recomendável que se revisite essas regras, para aumentar o protagonismo das empresas na busca da inovação e do aumento de produtividade.
Já para a expansão da geração, a experiência indica o contrário. Isto é, o governo, e não as empresas, é que deveria aumentar o protagonismo. Seria preciso aprimorar a legislação para atribuir ao governo a responsabilidade de produzir uma lista de empreendimentos de interesse público devidamente “blindados” contra posterior paralisação pela Justiça. Para isso seria necessária uma ação articulada entre MME, MMA, MPO, EPE, Aneel, ANA, Ibama, Funai, ICMBIO e Iphan. Em minha fantasia, os dirigentes dessas instituições são trancados numa sala e só podem sair quando tiverem produzido uma lista que sintetize uma solução de compromisso entre os interesses econômicos, sociais, energéticos, ambientais e culturais.
A coluna de Jerson Kelman
é publicada a cada dois meses
E-mail: jerson@kelman.com.br