Opinião

Mais um capítulo da infindável novela

Continuamos alterando questiúnculas sem dar um mergulho nas bases físicas da confusa adaptação vigente desde 1995 e que já nos proporcionou 80% de aumento real de tarifa

Por Redação

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Talvez por estar em curso uma situação política singular, com uma acirrada disputa política para o cargo mais importante do país, ninguém se dispõe a debater os fundamentos do modelo elétrico brasileiro. Continuamos alterando questiúnculas sem dar um mergulho nas bases físicas da confusa adaptação vigente desde 1995 e que já nos proporcionou 80% de aumento real de tarifa. Mesmo com uma crescente dívida bilionária que o Tribunal de Contas da União acaba de avaliar em R$ 61 bilhões, continuamos sem ir ao núcleo da atual tragédia elétrica.

Aqueles que acompanham o setor sabem que o modelo mercantil brasileiro é uma “joint venture” PSDB e PT. As mudanças de 2004 mantiveram a essência do sistema, que permanece instável. Esse pode ser o motivo de, estranhamente, o assunto ter ficado ausente nos debates e entrevistas.
Assim, somos obrigados a assistir a mais um capítulo de uma interminável novela que parece nunca encontrar o “fio da meada”. Agora, 12 anos depois, descobriram que o teto do Preço de Liquidação das Diferenças no mercado livre (PLD), que hoje vale R$ 822,83/MWh, deve ser alterado. Mais uma mudança de regras repentina que, na verdade, é só um “batizado”.

Na época da definição da regra, nos anos 2000, foi escolhida como referência a térmica de Camaçari, da Chesf, de 350 MW de capacidade e preço de R$ 319,00/MWh. Esse valor foi sendo atualizado a cada ano pelo IGP-M e atingiu os R$ 822,83/MWh atuais. É impressionante como, até nesse pequeno detalhe, esbarramos num dos mistérios do setor, a indexação pelo IGP-M. Esse não é o foco do artigo, mas é um ponto notável, pois tem tudo a ver com a crescente tarifa.
O argumento para mudar o teto é que, quando essa térmica é acionada, a maior parte das usinas já estaria gerando. Assim, a Aneel (Nota Técnica 86/2014 SEM/Aneel) resolveu reduzir o PLD max para R$ 388,04/MWh, pois esse nível seria “mais representativo” da maioria da geração  térmica, por estar mais próximo da média das usinas mais usadas.

Perfeito, mas custos não desaparecem. Se a térmica de R$ 822,83 é acionada, ela terá de ser paga. Na realidade esses custos apenas mudam de nome. Em vez de Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), passa a se chamar Encargo de Serviço do Sistema (ESS) e, de qualquer modo, irá desembarcar nas contas do consumidor.

Então, qual é o objetivo do batismo? Dada a desastrosa experiência de 2013, quando, por erros de avaliação, não se realizaram leilões para substituir os contratos de oito anos firmados em 2004 (também corrigidos pelo IGP-M!), as distribuidoras ficaram descontratadas, tendo de adquirir as diferenças de sua carga no mercado livre com o teto de R$ 822. Nesse momento, hidráulicas descontratadas passaram a vender energia por preços de térmicas caríssimas. Isso incomoda os defensores desse sistema, pois, nesse momento, floresce exuberante toda a sua bizarrice.

Ao reduzir o teto, diminui-se a dose da bizarrice, mas não se elimina o incômodo de ver hidroelétricas vendendo a preço de térmicas. A estratégia embutida é que usinas com custos menores seriam “incentivadas” a participar de leilões, pois, no mercado livre, o ganho não seria tão milionário.
Em termos de esquisitices, o quadro não muda muito, pois no último leilão usinas tão antigas quanto Mascarenhas de Moraes de Furnas saíram do mercado livre e venderam energia por R$ 270/MWh até 2019, ainda uma grande distorção.

Esse exemplo é bom para apreciar a nossa dose de exotismo. Alguns quilômetros a montante, no mesmo rio, a usina de Furnas, essa atingida pela MP 579, é obrigada a vender energia por R$ 9,42/MWh!  Esse é o quadro que temos. Água gerando a preço de gás e, no mesmo rio, energia quase gratuita.
Mas a novela não terminou, pois, lá no outro extremo (PLD min), aparecem outras incoerências.

Ao alterar o preço mínimo para R$ 30,26, a Aneel afirma que ele é o preço médio das usinas atingidas pela MP 579. Ora, apenas 16% das usinas hidráulicas teriam esse preço. Se o critério de representatividade foi usado para o preço máximo, por que não usá-lo para o preço mínimo? Para ser coerente com a alteração do PLD max, o PLD min deveria estar no entorno de R$ 70/MWh, um valor próximo à média das gerações hidroelétricas. Por que isso passa em branco, se a captura desse diferencial poderia até ajudar a pagar os momentos de penúria energética? Quem ganha com esse preço irrisório?
Mas a incoerência não acaba aí. Quem consultar a Nota Técnica 385/2012-SER/SRG/Aneel verá que a média das usinas atingidas pela redução tarifária não é R$ 30,26/MWh! A média correta é a ponderada pela garantia física e não a média simples. Essa é bem menor, como mostra a tabela a seguir com as principais usinas da Eletrobras.

Mas, na consulta pública sobre o assunto (Nota Técnica 86/2014 SEM/Aneel), a agência diz textualmente que “A percepção em relação ao PLDmin (R$ 15,62) é de que o valor não expressa o real custo de operação das usinas, ou seja, é inferior ao que se julga necessário para manutenção e operação dos empreendimentos”.
Se R$ 15,62 é inferior ao que se julga necessário para manutenção e operação dos empreendimentos, como a tarifa média das usinas da Eletrobras foi definida como R$ 7,67/MWh pela mesma agência? Afinal, como justificar tamanha discrepância?

Na realidade, a persistente elevação de tarifas sempre foi a “pedra no sapato” dos que defendem esse modelo mercantil que não respeita as singularidades brasileiras. Em vez de enfrentar as verdadeiras razões, o governo resolveu atender aos reclamos da indústria sem estudos e sem debate. Usando seu poder mandatório na Eletrobras, praticamente inviabiliza a empresa correndo atrás da prometida redução.
Esse artigo está sendo escrito logo após o anúncio da mudança de valores. Dada a instabilidade de regras não dá para garantir nada sobre sua duração. Pelo tamanho das incoerências da agência reguladora, também é possível imaginar que tipo de interferências foi utilizado para conseguir a redução de setembro de 2012.


Roberto Pereira D’Araujo
é diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina)

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