Opinião

Matriz elétrica

Por Redação

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A metodologia dos leilões para contratação de energia nova permite que usinas de diferentes naturezas concorram entre si. Ganha quem oferece o mais baixo ICB1, em R$/MWh. Em princípio, podem competir usinas com maior ou menor impacto social e ambiental, localizadas a maior ou menor distância dos centros de carga e “movidas” por diferentes fontes primárias (queda de água, vento, bagaço de cana, gás natural, carvão e óleo).

A ideia de comparar “bananas, peras e maçãs” com base numa única medida – o ICB – é atraente porque estimula a competição e a inovação, em benefício do consumidor. O procedimento alternativo – organizar leilões especializados, por fonte e região – precisaria ser precedido de uma discussão política para a escolha explícita da matriz elétrica (a% hidroelétrica, b% nuclear, c% eólica, d% bagaço de cana, e% solar, f% gás natural, g% carvão, h% óleo, i% resíduos urbanos, etc.).  Naturalmente, um processo político dessa magnitude faria a alegria dos lobistas. Por isso, em 2003-2004 eu concordava que a melhor opção – embora não perfeita – seria a métrica única (ICB). Passados dez anos, já não tenho tanta certeza.

Primeiro, porque é realmente difícil condensar um vetor de atributos que caracteriza uma opção energética numa única medida (ICB) para comparação com as demais opções. Tanto é assim que os leilões mais recentes têm sido direcionados a fontes específicas.
Segundo, porque a experiência demonstra que o cálculo do ICB não é simples. No capítulo 7 do livro que escrevi ao sair da Aneel2, trato de uma relevante inconsistência no procedimento para cálculo de ICB que fez com que em 2008 as térmicas com CVU elevado se tornassem artificialmente competitivas. Constatamos agora, em 2014, as consequências negativas dessa inconsistência.

Terceiro, porque o processo político não tem apenas defeitos; tem também qualidades. Por exemplo, configura uma oportunidade para que se defina de forma abrangente e integrada o que “pode ser feito” em termos de expansão da geração. Por esse caminho, cada proposta de composição da matriz deveria vir acompanhada de um conjunto de indicadores dos respectivos impactos econômicos, sociais e ambientais. Escolhida a matriz por uma instância política superior3, as diferentes instituições do Poder Executivo4 teriam a responsabilidade coletiva de aprovar uma lista de empreendimentos compatível com os percentuais da matriz. Seria muito diferente da situação atual, em que os empreendimentos de geração e de transmissão são licenciados ou discutidos na Justiça caso a caso, sem visão de conjunto. 

Reconheço que seria arriscado deflagrar uma discussão sobre a matriz elétrica num ambiente em que a democracia representativa tem sido frequentemente conspurcada por comportamentos não republicanos. Poderia resultar numa paralisante disputa político-fisiológica, com comprometimento do suprimento de energia elétrica. Por outro lado, a atual situação não é boa. Embora novas usinas e linhas estejam sendo construídas, tudo é extremamente penoso e desnecessariamente caro e confuso. Andamos a passo de tartaruga, com baixíssima produtividade. As autoridades que têm de decidir se um empreendimento pode ou não ser feito, tanto do Executivo quanto do Judiciário, podem dizer “não pode” sem o incômodo de ter de dizer “o que pode” e “como pode”. Se houvesse uma matriz previamente definida, assim como a responsabilidade legal de aprovação de um conjunto de obras compatível com a matriz, esse comportamento quase irresponsável teria de cessar. Penso que vale a pena tentar. Corre o risco de dar certo.

A coluna de Jerson Kelman
é publicada a cada dois meses.
E-mail: jerson@kelman.com.br

1 Índice de Custo Benefício. Embora a imprensa costume se referir ao ICB como o “preço da energia”, na realidade é uma medida que permite comparar o valor esperado do custo de uma nova unidade de energia assegurada, na ótica do consumidor.

2 Desafios do Regulador, Editora Synergia, 2009.

3 Talvez o próprio Congresso Nacional, por meio de uma lei, à semelhança da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

4 MME, MMA, MPO, EPE, Aneel, ANA, Ibama, Funai, ICMBIO e IPHAN.

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