Opinião

Nova Lei do Gás Natural: algumas considerações

Por Redação

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Depois de vários anos de discussão, foi publicada a Lei 11.909 – a Lei do Gás –, dispondo sobre as atividades relativas à cadeia de suprimento do gás natural. É uma lei extensa, com 60 artigos, e vários deles ainda necessitam de regulamentação. Além disso, diversos artigos requerem: (i) o estabelecimento de diretrizes a serem propostas ora pelo CNPE, ora pelo MME; e/ou (ii) regulamentações a serem definidas pela ANP. Consequentemente, trata-se de uma lei que ainda não pode ser interpretada e aplicada na sua totalidade, porque muitos dos seus pontos mais controvertidos ainda serão objetos de decisões políticas e regulatórias.

Além disso, tratando-se de uma indústria gasífera ainda emergente no país, que requer massivos investimentos em infraestrutura e tecnologias de uso final do gás, há de se considerar, igualmente, os quadros nebulosos em relação às capacidades de financiamento do país. O sucesso da lei em promover investimentos poderá depender de forças maiores. Existe, portanto, um processo evolutivo (político, econômico e estratégico) extremamente complexo, envolvendo inúmeras incertezas, o qual será influenciado (e também influenciará) a aplicação da lei. Com isso, abrem-se incontáveis desafios a serem vencidos nos próximos anos.

É possível distribuir os comentários sobre os principais tópicos da Lei do Gás em dois conjuntos, sendo o maior deles relativo ao transporte de gás natural por dutos. Em paralelo, vários outros temas também foram tratados.

A lei inovou quando acrescentou uma nova estrutura jurídica para a exploração das atividades de transporte de gás natural por dutos. Introduziu-se a modalidade de concessão convivendo com a autorização, já utilizada desde a Lei do Petróleo, de 1997.

A experiência do regime de autorizações exigia um sistema contratual complexo, envolvendo todos os agentes da cadeia produtiva (do produtor ao consumidor final). Através desses arranjos contratuais, procurava-se a melhor distribuição de rendas e riscos no sentido de viabilizar a construção de novos gasodutos e aumentar o acesso ao gás para os consumidores. Esse regime contratual e jurídico mostrou-se insuficiente para promover maiores investimentos, impondo riscos excessivos aos carregadores em um mercado ainda emergente.

A adoção da concessão pode oferecer maiores oportunidades para a ação de políticas públicas, permitindo redistribuir melhor rendas e riscos entre o Estado, concedente, e os agentes econômicos da cadeia produtiva. Em princípio, pode-se esperar um efeito indutor de investimentos e promotor de um ambiente mais competitivo. No entanto, esta nova modalidade ainda dependerá de diretrizes do MME e de regulação da ANP.

Por exemplo, a licitação para a outorga de concessão ocorrerá após a realização, pela ANP, de Chamada Pública, cujo procedimento ainda deverá ser definido. Na outorga de uma concessão, os carregadores firmarão termos de compromisso, dando mais segurança para a realização dos certames de licitação.

Vale relembrar que, mesmo na modalidade de autorização, já houve chamadas públicas quando foi proposta a ampliação do Gasbol, no início dos anos 2000. Na época, incertezas jurídicas, aliadas a dificuldades de prever a evolução do mercado, inviabilizaram o processo institucional proposto. Parece que a modalidade de concessão garante um melhor entendimento jurídico, mas as incertezas financeiras e de mercado continuam extremamente presentes.

A Lei 11.909 permite, por determinação do MME, a utilização da PPP como forma de distribuir rendas e riscos entre agentes públicos e privados. Entretanto, parece difícil conceber de pronto uma “PPP de transporte de gás”, em virtude de todas as implicações administrativas, financeiras e jurídicas que este modelo pode trazer, principalmente na ausência de consenso sobre o papel do gás e dos gasodutos na política energética e no desenvolvimento do país.

Ainda sobre a concessão, a Lei do Gás determina que o poder concedente deve estabelecer “períodos de exclusividade para a exploração da capacidade de transporte dos novos gasodutos”. Aos carregadores iniciais, essa é questão chave na definição dos riscos a serem absorvidos. Também merece destaque o fato de que se previu a possibilidade legal de se delegar à ANP a competência de declarar “áreas de utilidade pública”, para fins de “desapropriação e instituição de servidão administrativa”. Tal medida certamente converge para a redução dos riscos em obras, as quais poderão apresentar maior eficiência e celeridade.

Embora sendo uma atividade econômica, a ANP continuará a efetuar o registro dos contratos, os quais deverão incluir uma cláusula para solução de eventuais divergências através do uso de arbitragem (em conformidade com a legislação brasileira). Aqui também a lei caminhou no sentido de modernizar os mecanismos para resolução de conflitos, evitando o encaminhamento ao Judiciário de questões tão peculiares e que certamente serão mais bem decididas por árbitros experientes.

No que se refere à agência, a Lei do Gás não veio para ampliar suas atribuições mais consentâneas com a regulação. Ao contrário: pelo novo dispositivo legal, o MME avocou muito das atribuições que seriam do órgão regulador. Da mesma forma, a lei não eliminou vários obstáculos impostos pela distribuição de competências regulatórias entre as esferas Federal e Estaduais.

Nos casos de importação e exportação, é imperioso mencionar que a Lei do Gás aponta que se deverá cumprir a Lei 8.176/1991, que trata de estoques estratégicos. A aplicação transparente desta lei ainda não é conhecida, e sua implantação jamais foi viabilizada, mesmo em relação ao petróleo e seus derivados, para os quais ela foi concebida.

Em relação ao gás, é possível afirmar que o Brasil se encontra ainda mais distante de qualquer posição convergente sobre a operação e a regulação de estoques estratégicos. Não existem sequer estoques operacionais de gás natural no país que possam fazer face a importantes oscilações sazonais da demanda. Portanto, a referência à Lei 8.176 impõe compromissos complexos a CNPE, MME e ANP, bem como pode também ser um item de risco sistêmico para as transações comerciais internacionais de gás natural.

Nota-se que o mercado de gás é dinâmico, exigindo criatividade. Com isso, pode-se conceber a contratação do energético com vários objetivos e em diversos estados físicos. Este é um dos maiores desafios que os profissionais do setor terão de enfrentar na negociação, na elaboração e na execução dos contratos. Pensar no gás natural em seus vários estados físicos permite, por exemplo, repensar a logística do gás, incorporando vários modais alternativos (dutoviário, rodoviário, ferroviário e aquaviário). Em um país de dimensões continentais como o Brasil, a Lei do Gás deveria ter sido mais abrangente em seu alcance.

Quanto às instalações de tratamento e escoamento, processamento e liquefação/regaseificação, a lei também poderia ter avançado na valorização do princípio da essential facilities. Tais etapas da cadeia de suprimento não receberam a mesma importância de tratamento em comparação ao transporte dutoviário. Com isso, a Lei 11.909 manteve um resquício de “Lei de Transporte Dutoviário de Gás Natural”, talvez perdendo a oportunidade de se tornar uma verdadeira “Lei do Gás Natural”.

Em relação à garantia de suprimento aos consumidores de gás, a lei não previu instrumentos criativos que pudessem induzir a uma maior facilidade de acesso ao gás por consumidores dispostos a receber o novo energético, mas ainda desconectados das redes de suprimento. Priorizou-se a questão do “acesso aos gasodutos”, que afeta os operadores (e eventualmente os grandes consumidores), em vez de se priorizar um conceito talvez mais forte de “acesso ao gás” dentro de uma perspectiva mais universal de consumo.

Por outro lado, a Lei trata de um plano de contingência para situações de exceção. Mediante proposição a ser elaborada pelo CNPE e aprovada por decreto do Presidente da República, o plano comportará eventuais alterações nas condições de entrega do gás estabelecidas nos contratos. Esse plano deverá estar em equilíbrio com a gestão (ainda desconhecida) dos estoques estratégicos. Aqui, vale como última reflexão que a lei não parece revelar um completo entendimento de que os problemas de incerteza no suprimento de gás vividos por alguns consumidores nos últimos anos estão prioritariamente associados às políticas governamentais e estratégias empresariais de priorização do uso do gás para a geração de eletricidade.

Maria D’Assunção da Costa é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP e sócia da Assunção Consultoria

Edmilson Moutinho dos Santos é professor associado do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP

Os autores são colaboradores da “Cátedra do Gás”  (http://catedradogas.iee.usp.br)

Outros Artigos