Opinião

Novo marco regulatório do setor de energia elétrica requer cautela e estratégia

Alterações pretendidas pelo novo marco regulatório também devem garantir período de transição das regras atualmente vigentes com respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das concessões

Por Bruno Gandolfo

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A crise hídrica que assolou o Brasil no início século, culminando na implementação de programa de racionamento de energia no início dos anos 2000, alertou o país sobre a necessidade de rever o modelo do setor elétrico até então vigente, de modo a incentivar, em especial, a expansão do parque gerador para garantir a segurança energética e a universalização do acesso aos serviços de energia elétrica.

Foi neste sentido que foram editadas a Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002 e a Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, esta última posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 5.163, de 30 de julho de 2004 que, dentre outros, criaram a o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) e a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), bem como propiciaram o desenvolvimento dos ambientes de contratação livre e regulado e a contratação de energia por meio de leilões regulados.

Passados quase 20 anos da implementação do referido marco regulatório, a país atravessa outra complicada situação hidrológica que, mais uma vez, alerta para as ineficiências do atual modelo, que há muito já vinham sendo debatidas no setor em razão, principalmente, dos avanços tecnológicos e da existência de cada vez mais opções de desenvolvimento e fruição dos serviços de energia elétrica, questionamentos sobre a segurança do suprimento, subsídios, compartilhamento de custos etc.

Alguns temas de grande relevância já vêm sendo tratados de forma esparsa, em Medidas Provisórias e Projetos de Lei específicos, como o fim do subsídio do desconto nas Tarifas de Uso dos Sistemas por alguns geradores – vide Lei nº 14.120/2021 – e no novo marco regulatório para a geração distribuída, discuto no âmbito do Projeto de Lei nº 5.829/2019.

Sem prejuízo, desde 2015, tramita no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 1.917/2015 – o chamado PL da Portabilidade da Conta de Luz – que, após anos de discussão, deve ter seu relatório votado na comissão especial nesta terça-feira 09.11.21, também com a promessa de instituir um novo marco regulatório para o setor elétrico.

O texto sob análise busca ampliar o acesso ao ambiente de contratação livre – hoje tratado no âmbito da Portaria MME nº 465/2019 – indicando o prazo de até 72 meses para o fim do requisito mínimo de carga para a migração de consumidores e encaminhando a consolidação da representação de pequenos consumidores pelos chamados comercializadores varejistas.

Ainda no âmbito das possibilidades para o consumo de energia e com o objetivo de ampliar a segurança jurídica, o texto sugere uma maior clareza nos direitos e deveres dos agentes de autoprodução de energia, detalhando o pagamento de eventuais encargos, a figura do autoprodutor por equiparação e, ainda, condições de acesso a fruição dos sistemas de transmissão e distribuição.

Em contrapartida à ampliação do mercado livre e de autoprodução, o texto prevê algumas medidas para que as concessionárias de distribuição tenham maior gestão sobre seu portfólio de compra de energia elétrica, indicando a possibilidade de comercialização e descontratação por novos mecanismos.

Neste sentido, também com o objetivo de garantir a segurança e o equilíbrio no mercado de energia, o texto a ser levado a votação também aborda a tão comentada separação da contratação entre lastro e energia que, de certa forma, será “testada” com a realização do Leilão de Reserva de Capacidade já previsto para dezembro deste ano.

Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 414/2021 – atual denominação do PLS 232/2016 – que objetiva alterar o atual marco regulatório do setor elétrico, também indicando metas temporais para a ampliação do acesso ao mercado livre, a redistribuição do pagamento de encargos setoriais e a separação entre lastro e energia.

Na esteira da tramitação destes processos legislativos, o Ministério de Minas e Energia editou a Portaria Normativa nº 31/GM/MME, de 22 de outubro de 2021, que trata das medidas para a implementação da modernização do setor elétrico no âmbito do Ministério, por meio da definição de planos de ação em cada uma das frentes de atuação definidas e que poderá contar com apoio das demais instituições do setor, em especial, da ANEEL, da CCEE, da EPE e do ONS.

Não temos dúvidas que o atual modelo regulatório do setor elétrico teve relevante contribuição no desenvolvimento do setor, na expansão do parque gerador, na diversificação da matriz, na universalização do acesso aos serviços de energia e na ampliação da segurança do sistema.

De toda forma, os desafios para o desenvolvimento energético nas próximas décadas, com o acesso cada vez mais rápido e barato à informação, o surgimento de novas tecnologias no setor de energia, o avanço da política ESG, a digitalização dos serviços e uma nova dinâmica na relação entre os consumidores e agentes, exigem uma atualização do nosso arcabouço legal e regulatório com o propósito de aprimorar o próprio funcionamento do mercado de energia.

Neste contexto, é importante destacar que profundas alterações legais e regulatórias, tal como as pretendidas – que já nascem com o objetivo de perdurar por médio e longo prazos – têm impacto direto no setor como um todo; setor esse que promete continuar sendo um dos mais relevantes indutores da captação de recursos e realização de investimentos das próximas décadas, razão pela qual, tais alterações devem ser suficientemente claras para garantir a segurança jurídica necessária à perpetuação desse ciclo virtuoso.

Por tal razão, além da definição das regras para os próximos anos, as alterações pretendidas pelo novo marco regulatório também devem garantir um período de transição das regras atualmente vigentes com respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das concessões, autorizações e contratos vigentes, de modo a sinalizar aos agentes e investidores que o desenvolvimento do setor elétrico brasileiro e as alterações necessárias continuarão a se pautar pelo histórico de respeito aos contratos vigentes e à segurança jurídica.

Diante disso, faz-se imprescindível que a avaliação seja feita de forma ampla e profunda, verificando em qual medida haverá a necessidade de coexistência e convivência de realidade distintas (ao menos, por um determinado período) ou, ainda, a necessidade de criação de mecanismos de indução à migração para o novo modelo proposto sem que haja um incentivo perverso à judicialização. 

Espera-se que o tema continue protagonizando as discussões do setor elétrico nos próximos meses quando será de extrema relevância a participação das instituições, agentes e sociedade para que o novo marco regulatório contribua para a modernização do setor elétrico com a ampliação do acesso e segurança dos serviços de energia elétrica a preços justos, de modo a contribuir para a retomada do crescimento econômico do país.

Bruno Gandolfo Damico é advogado, sócio do escritório Stocche Forbes que atua na área de infraestrutura; Frederico Accon Soares é advogado sênior, sócio do escritório Stocche Forbes que atua nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação com ênfase no Setor Elétrico; Mariana Saragoça é advogada, sócia do escritório Stocche Forbes que atua nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação

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