Opinião

O IFRS e as distribuidoras de energia elétrica

A coluna de Jerson Kelman   

Por Redação

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Lembro-me de uma reunião com a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ela havia sido recentemente transferida do MME, e, no início da discussão, relutava em aceitar os argumentos de um grupo de técnicos que defendiam a criação de um novo tipo de compromisso comercial entre os geradores termelétricos e as distribuidoras: os chamados contratos por disponibilidade. Trato do assunto no livro “Desafios do Regulador”: nesse tipo de contrato, tudo se passa como se o empreendedor construísse a usina e a operasse sob o comando do ONS. Em troca, os consumidores lhe pagam um aluguel anual, chamado de renda fixa. Em condições hidrológicas adversas, quando a termelétrica é acionada, o consumidor fica com o ônus e o bônus: paga o custo previamente acordado para o combustível, mas fica com o resultado da venda da energia elétrica, valorizada ao preço spot, para abater o volume de encargos.
Assim, no contrato por disponibilidade, é o consumidor que assume o risco hidrológico, e não o gerador. À primeira vista, pode parecer um arranjo injusto para o consumidor. Mas, se o risco fosse alocado ao gerador, ele embutiria no preço da energia um alto custo do “seguro hidrológico”, que inescapavelmente seria pago pelo próprio consumidor.
Sob o ponto de vista operacional, a Aneel embute no cálculo da tarifa de cada distribuidora uma expectativa da despesa com os contratos por disponibilidade que caberá ao consumidor saldar nos 12 meses subsequentes. Naturalmente, só por uma coincidência a previsão feita no início de um ano regulatório. digamos no mês 0, coincidirá com o observado ao longo do período compreendido entre os meses 1 e 12. A diferença constitui a chamada CVA (compensação da variação da Parcela A Custos de Geração, Transmissão e Encargos), que é paga ou recebida pelo consumidor no período compreendido entre os meses 13 e 24.
Essa complexa operação era até recentemente neutra para a distribuidora porque a norma orçamentária permitia que se incluísse no Ebitda (lucro antes de impostos, depreciação e amortização) do período de 1 a 12 a provisão regulatória” correspondente ao CVA, que poderia ser positiva ou negativa. Ou seja, assim como as geradoras, também as distribuidoras eram imunes ao risco hidrológico.
Entretanto, uma decisão da CVM, autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, trouxe o risco hidrológico para o colo das distribuidoras: as empresas passaram a ter a obrigação de adotar as chamadas normas internacionais de contabilidade (IFRS). Apesar do nome, essas normas não são tão internacionais assim, uma vez que os EUA ainda não as adotaram.
Para o que importa na presente discussão, o IFRS não permite que se inclua a provisão regulatória (CVA) nos demonstrativos de resultado das empresas (Ebitda e, consequentemente, lucro líquido). É fácil demonstrar que essa modificação resulta num aumento de volatilidade, tanto do Ebitda quanto da capacidade de endividamento da distribuidora. Significa que, para enfrentar essa nova situação, as distribuidoras estão sendo forçadas a aumentar o patamar mínimo do caixa, ou a diminuir o nível de endividamento, possivelmente em desacordo com a relação entre capital próprio e de terceiros que a Aneel recentemente assumiu no cálculo do WACC.
A adoção do IFRS pelas distribuidoras brasileiras tem implicações específicas, inexistentes em outros ramos da economia, por conta das variações dos itens da Parcela A (efeito hidrológico, variação dos encargos setoriais, do dólar de Itaipu, etc.). De cada R$ 100 que uma típica distribuidora fatura, apenas R$ 25 são destinados à sua atividade (R$ 10 para cobertura de seus custos operacionais e R$ 15 para remunerar seus investimentos, o que equivale ao seu Ebitda). Os demais R$ 75 apenas passam pelo caixa da empresa, em movimento para outros destinos, sendo cerca de R$ 45 destinados à cobertura da Parcela A. Nesse contexto, cada 1% de carryover interanual do fluxo financeiro destinado à Parcela A significa 3% de carryover do fluxo destinado ao Ebitda da distribuidora, que, na regra antiga, constituiria a provisão regulatória. Não mais.
O assunto é complexo. Por isso a CVM faria bem se ouvisse atentamente o que a Aneel tem a dizer sobre o assunto.

A coluna de Jerson Kelman é publicada a cada dois meses

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