Opinião

Motor Flex: o Brasil, de inspirador a vítima

Soluções energeticamente ineficientes são fatalmente atropeladas pelas eficientes. O motor otimizado para etanol existe e se não ressurgir no Brasil, pode aparecer em Nebraska, Iowa ou outro Estado produtor de milho dos EUA

Por Jayme Buarque de Hollanda

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Na virada do século as montadoras de carros brasileiras, no lugar de motores otimizados para o etanol, adotaram motores flex. Essa troca é hoje a principal barreira ao uso eficiente do etanol no Brasil, um contrassenso num momento em que os combustíveis de fonte renovável são prioritários. Felizmente isso pode mudar.

Para reduzir a dependência da importação de petróleo, os EUA aprovaram, em 1988, o "Alternative Motor Fuels Act (AMFA)" com incentivos à produção de carros que substituíssem gasolina por etanol de milho produzido nos EUA. O exemplo do Brasil foi importante, pois aqui circulavam 5 milhões de carros a etanol com excelente aceitação e desempenho. Além de diminuir o desequilíbrio cambial, a baixa emissão do motor a etanol diminuiu a poluição crônica da cidade de São Paulo.

Como a produção e a distribuição de etanol nos EUA ainda tinham que ser desenvolvidas, a solução foi usar um motor "flex" que usa gasolina ou etanol quase puro (E85: 85% de etanol e 15% de gasolina). Para ser eficiente com a gasolina, porém, esse motor é necessariamente ineficiente com o etanol.

Passadas três décadas da legislação que criou a AMFA, hoje circulam pouco mais que vinte milhões de flex nos EUA, mas apenas um milhão usam regulamente E85, concentrados nos estados produtores de etanol, onde é mais barato. A proporção de etanol no E85 tem sido reduzia e pode ser de apenas 51%. Considerando o subsídio por tantos anos, a substituição de etanol por gasolina foi ínfima.

A verdadeira revolução do etanol nos EUA ocorreu a partir de 2000, quando decidiram substituir 10% da gasolina por etanol para aumentar a octanagem do combustível fóssil e reduzir emissões. O etanol substituiu produtos poluentes e tóxicos, como o chumbo, hoje proibidos. Como consequência, em vinte anos, os EUA se tornaram os maiores produtores de etanol do mundo.

Voltando ao Brasil, quando o preço da gasolina aumentou muito na virada do século tentei comprar um carro a etanol. Nas concessionárias os vendedores, que só tinham carros novos a gasolina, faziam um discurso ensaiado contra o etanol: "combustível fraco, tem até água!"; “o tanque enferruja!”; "não pega no frio"; "se sobe o preço do açúcar, falta etanol!"; etc.

A política do etanol estava abandonada à própria sorte; a agência para regulamentar os combustíveis criada em 1998 foi chamada "Agência Nacional do Petróleo". O etanol não recebia a atenção adequada pois era a única alternativa viável desenvolvida para substituir o petróleo.

As montadoras não modernizaram os motores a etanol, que teriam melhorado a performance com a ignição e injeção eletrônicas. Tinham know-how para tanto, mas a partir de 2003 preferiram usar o flex. Apesar do péssimo desempenho com o etanol, esses flex foram um sucesso de venda. A solução "meia-sola" do flex foi favorecida pelo baixo preço do etanol. Motoristas dos flex passaram a definir o combustível usando a premissa de que a autonomia do veículo com etanol era 70% daquela proporcionada pela gasolina. A inadequação do motor flex passou a ser percebida como um defeito do etanol e acabou aceita, inclusive pelos produtores do combustível.

Soluções energeticamente ineficientes, porém, são fatalmente atropeladas pelas eficientes. Por isso ouso prever a volta do uso eficiente do etanol. Tinha pouca esperança até que uma montadora brasileira anunciou o lançamento de carros a etanol com consumo por km igual ao do mesmo modelo a gasolina. Não levou adiante, mas o motor existe. Pode interessar, por exemplo, aos milhares de motoristas de aplicativos que operam só com etanol e têm o combustível como principal custo. Um motor otimizado para o etanol não é complicado. Se não ressurgir no Brasil pode aparecer em Nebraska, Iowa ou outro Estado produtor de milho dos EUA. É esperar para ver.

 

 

 

 

Jayme Buarque de Hollanda é engenheiro eletrônico (PUC RJ) e estatístico (ENCE), pós-graduado em sistemas de controle na SUPAÉRO (França). Atualmente Presidente do Conselho Diretor do Instituto Nacional de Eficiência Energética-INEE. Fundou e presidiu até 2016 a Associação Brasileira do Veículo Elétrico e foi Diretor Econômico Financeiro da Embratel

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