Opinião
PCHs superestimadas
Imagine um país onde 43% dos motoristas têm suas carteiras de habilitação revogadas. Será que os motoristas são imprudentes ou as regras fazem com que mesmo os motoristas responsáveis sejam punidos? Troque “motoristas” por Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e “regras de trânsito” por revisão da Garantia Física (GF) de acordo com a Portaria MME 463/2009 e terá a imagem do mercado de PCH do Brasil. A estatística aparece na Nota Técnica 76/2015-SRG/Aneel. Da amostra de 347 PCH avaliadas, 192 mantiveram a GF inalterada (55%), 7 tiveram aumento de GF porque a geração média foi superior a 110% da GF original (2%) e 148 tiveram redução de GF porque a geração média foi inferior a 90% da GF original (43%). Neste grupo de “infratores” há casos em que a geração média foi menor que 50% da GF original.
A GF é o principal parâmetro comercial da PCH por definir sua máxima energia contratável e – se optante pelo Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) – suas cotas de participação sobre a produção hidrelétrica total. Nada preocupa mais uma PCH que a possibilidade de ter sua GF reduzida. Os riscos podem não ser gerenciáveis caso tenha vendido contratos de longo prazo baseados na GF original: penalidade, necessidade de recomposição de lastro e compra de energia na CCEE (pior se os PLDs estiverem altos).
Então, qual a explicação: motoristas imprudentes ou “pegadinhas” nas regras de trânsito? Na realidade há uma combinação dos dois fatores. Categoria “imprudência”: (1) Estudos hidrológicos otimistas para a definição das vazões afluentes (como normalmente não existem medidas no local da PCH, é necessário regionalizar as vazões a partir de observações em postos vizinhos, às vezes escolhidos “a dedo” para maximizar as vazões inferidas na PCH). Técnicas para o preenchimento de falhas e extensão de série de vazões inadequadas, assim como desconsideração dos usos de água a montante (existentes e projetados) também são comuns; (2) Eficiência turbina-gerador e taxa de disponibilidade sobre-estimadas, consumo interno e perdas na conexão elétrica subestimados. Categoria “pegadinhas”: (3) existem questões não gerenciáveis pela PCH, a principal sendo a operação comercial coincidir com uma seca excepcional. Nesse caso a PCH poderá ter GF reduzida, mesmo que idônea e havendo empregado a melhor técnica; (4) Há um viés na metodologia de cálculo oficial da Portaria que sobre-estima a GF.
As recomendações em cada caso são: (1) os estudos hidrológicos não seriam feitos pelos empreendedores, mas pela Agência Nacional de Águas (ANA) junto com universidades num serviço de utilidade pública; (2) a energia produzida pode ser diretamente confrontada com a prevista no início da operação com a hidrologia verificada. Na maioria dos casos as PCH possuem queda constante, o que facilita essa comparação. Em caso de discrepância, um ensaio “potencia x vazão turbinada” deve ser feito, fiscalizado pela Aneel; (3) o mecanismo atual de revisão de GF da Portaria 463/2009 deve ser substituído. Se a diferença entre geração média e GF estiver dentro de uma tolerância, a GF revisada seria uma combinação entre a GF original (100% ao início, indo para 0% após 5 anos) e a energia média (0% ao início, indo para 100% após 5 anos). No caso de desvios excepcionais (geração média muito abaixo do esperado), uma auditoria seria feita para eventual revisão excepcional. Sobre (4) a providência é alterar a metodologia de cálculo de GF para uso de vazões diárias no lugar de vazões médias mensais. Não se trata de um capricho: num exercício, observei que a GF de uma PCH diminuiria de 3,1 MWm para 2,4 MWm (mais de 20%) ao usar vazões diárias, mais aderentes à realidade operativa das PCHs. Como visto, a Portaria introduz um viés que sobre-estima a GF, para reduzi-la alguns anos depois, com risco de grave exposição financeira dos proprietários.
Há espaço para aprimoramentos tanto entre os estudos apresentados pelos empreendedores como na legislação atual.
Rafael Kelman é diretor da PSR