Opinião
Le Roi et Mort Vive le Roi! Sobre a Utility do Futuro
As tecnologias disruptivas vêm modernizar a distribuição de energia, mas dependem do novo papel das distribuidoras para prosperar
Em todas as partes do mundo, as distribuidoras estão enfrentando o desafio de se adaptarem às novas tecnologias e a um ambiente mais liberal de mercado. Ao mesmo tempo, continuam a gerir um grande volume de ativos tradicionais, de origem monopolística e com limitada flexibilização.
As alternativas para esse impasse variam; no entanto, uma coisa é certa: as tecnologias disruptivas, que estão literalmente “passando pelos fios”, mudarão de forma definitiva o fornecimento de energia. Enquanto profissional do setor, meu trabalho consiste em conscientizar as distribuidoras sobre essas novas disrupções e identificar estratégias e soluções para a convivência, bem como a sobrevida delas com a atual estrutura de mercado.
Mais do que listar as principais tecnologias e tendências que estão transformando profundamente o papel das distribuidoras, busquei aqui traçar os desafios que cada uma delas enfrentam para se firmar. Vamos a elas:
Prosumer
Hoje, quando consideradas as metas do Acordo de Paris, vemos que o mundo caminha para um modelo mais limpo, descentralizado e apoiado por sistemas amplamente digitais. E nesse mundo está um consumidor que gera a sua própria energia – algo impensável até o desenvolvimento da geração distribuída (GD).
E é na rede de distribuição de energia que surge o primeiro desafio: como adaptar um modelo dimensionado para atender usinas estruturantes de grande porte? Na GD, onde o consumidor recebe e também injeta energia na rede, ela não só flui nos dois sentidos como também transmite valiosos dados acerca de oferta e demanda.
A solução vai muito além da instalação de medidores inteligentes. O monopólio natural da distribuição necessita ser amplamente repensado. Além dos mecanismos técnicos que possibilitam gestão e flexibilização de oferta e demanda, o prosumer cria a necessidade de sistemas descentralizados contábeis e financeiros.
Peer to peer
A GD resultará naturalmente em modelos de negócio que permitam a intermediação entre agentes. A geração e o consumo em uma mesma localidade geográfica eliminam um dos maiores gargalos dos modelos convencionais de fornecimento de energia limpa: a geração fisicamente distante do seu centro de consumo.
Entretanto, surge nesse sistema um elemento novo: como integrar essa capilaridade composta por pequenos geradores, cuja atividade final não está diretamente ligada ao setor elétrico? Operações peer to peer tornam-se complexas pelo crescimento exponencial entre os usuários. Mais desafiante é o potencial de desdobramento destes modelos de negócio. Às transações de compra e venda de energia somam-se os modelos de sharing como, por exemplo, o compartilhamento de baterias e recargas para carros elétricos.
Veículos elétricos
O preço das baterias caiu 35% em 2018. Enquanto muitos se concentram em conceitos de mobilidade, as distribuidoras identificam nos veículos elétricos enormes desafios e oportunidades dentro da sua área natural de domínio.
O maior obstáculo é o da infraestrutura: se por um lado as distribuidoras estão bem posicionadas para explorar redes de ponto de recarga; por outro, volumosos investimentos são necessários em um mercado competitivo, ramificado e em constante inovação.
Porém, as distribuidoras também reconhecem, nos veículos elétricos, “usinas virtuais ambulantes”, visto que podem ajudar na administração da carga de energia. Isso evitaria o seu grande “calcanhar de Aquiles”: precisar aumentar a sua capacidade para acomodar picos de consumo ou adquirir energia a preços mais altos e de outras fontes geradoras.
Como nos demais tópicos aqui apresentados, o veículo elétrico contribui para o aumento da complexidade enfrentado pelas distribuidoras: a digitalização de redes de distribuição e a chegada de concorrentes com novas tecnologias.
Blockchain
Considerada a próxima internet, o blockchain viabiliza integração de negócios que explodem em complexidade por meio da descentralização de dados, decisões, transações, contrapartes. É o que ocorre quando um grande número de prosumers, em uma determinada rede de distribuição, se associa a plataformas peer to peer para capitalizar sobre o próprio excedente de produção ou, ainda, para disponibilizar uma capacidade de armazenamento do seu carro elétrico que ficou na garagem naquele dia.
Soma-se a este cenário o fato de que a variedade de plataformas promovendo a interação entre tais prosumers, com ou sem ofertas entre peers, virá de empresas de atividade majoritariamente digital e sem vínculo com a própria distribuidora. A distribuidora, por sua vez, já não terá monopólio da distribuição e passa a se concentrar, principalmente, na gestão de cargas a partir da enormidade de dados digitais gerados pelos consumidores.
A complexidade que emerge dessas transações serão melhor endereçadas com tecnologias como o blockchain, ainda que essa tecnologia se confronte com questões essenciais tais como a definição de controladores, o compartilhamento de redes e a integração de redes privadas.
Por fim, cabe destacar dois desenvolvimentos imprescindíveis para viabilizar a utility do futuro: investimento em capital humano e formulação de regulação adequada.
O primeiro promete ser a grande batalha dos mercados em ambientes tecnológicos constantemente em mutação. A “guerra por talentos” é um problema real numa realidade em que programação e automação ainda estão distantes dos currículos escolares.
O segundo requer sensibilização e capacitação sem morosidade. O setor de energia está intimamente ligado a políticas públicas: as distribuidoras possuem uma estrutura de custos delimitada pelo regulador, além de uma função arrecadatória para o Estado. Assim, cabe também ao regulador uma postura mais proativa, se familiarizando com assuntos que hoje fogem do seu escopo.
Rachel Andalaft é fundadora da REA Consult, consultora e gestora junto a investidores institucionais.