Opinião
Tempo de mudança
Hoje, os mecanismos de alocação de riscos disponíveis no setor elétrico no Brasil são inadequados. Como consequência, observam-se desequilíbrios de natureza econômico-financeira e uma crise de governança, somados ao grave quadro político e econômico que assola o país. Alguns sintomas desse processo: pedidos de revisão tarifária extraordinária, elevada judicialização, atrasos na entrada em operação de ativos de geração e dificuldades de atrair investidores para a transmissão.
Por certo esse quadro não é alvissareiro; contudo, a recente nomeação de pessoas com reconhecidas competência e capacidade de diálogo às posições-chave do setor tem proporcionado uma mudança positiva no ânimo dos agentes; mas de modo geral há consenso sobre a necessidade de mudanças.
Pesquisa realizada num evento em maio revela que mais de 70% dos entrevistados são favoráveis a mudanças significativas ou reformulação no atual modelo regulatório (Roland Berger); entretanto, muitos argumentam que essa revisão deveria preservar os pilares do marco legal. Será possível ou mesmo desejável promover mudanças capazes de restabelecer um ambiente de negócios hígido, que permita atender aos objetivos de política energética, sem alterar substancialmente o modelo em suas bases?
Um dos pilares do modelo instituído pela Lei 10.848/2004 é o requisito de que as distribuidoras estejam permanentemente contratadas para atender às necessidades de seus mercados num horizonte de cinco anos. Como resultado dos leilões, as distribuidoras firmam contratos de longo prazo, que viabilizam financiamentos também de longo prazo, a taxas subsidiadas. Desde 2012, porém, tem-se assistido a eventos que evidenciam o descasamento entre o portfolio de contratos e o mercado realizado ou observado.
O primeiro caso importante foi a MP 579/2012, que estabeleceu condições para a renovação antecipada das concessões de geração e transmissão. Na expectativa (ou certeza) de adesão completa pelos geradores, o governo não promoveu leilão de energia existente (A-1) ao final de 2012, para entrega em 2013. A recusa aos termos propostos por um conjunto de empresas deixou distribuidoras com contratação inferior ao que era necessário – a exposição involuntária. Diferenças tiveram que ser liquidadas a um alto PLD, fruto da maior geração termelétrica causada, entre outros fatores, por falta de chuvas.
Para lidar com esse quadro sem comprometer a promessa de redução das tarifas aos consumidores, foi fechada operação de empréstimo com um conjunto de bancos, da ordem de R$ 20 bilhões, a serem pagos por meio de repasse às tarifas a partir do segundo semestre de 2015, ano de início de uma política de realinhamento tarifário. Fruto, inclusive, de um Tesouro incapaz de continuar transferindo recursos para o setor, o aumento das tarifas teve severas consequências, como elevação nos níveis de perda e inadimplência e queda de mercado para as distribuidoras, cenário agravado pela desaceleração econômica transformada em recessão, deteriorando ainda mais as condições econômico-financeiras das companhias.
Instalou-se então quadro de sobrecontratação, no qual a soma de contratos e quotas alocadas pela renovação das concessões excedia às necessidades das distribuidoras para atender a seus (deprimidos) mercados – tema, inclusive, de audiência pública na Aneel (004/2016). Exposição involuntária e sobrecontratação evidenciam a falha dos mecanismos que estão na base do modelo para distribuir riscos adequadamente.
Riscos excessivos e insustentáveis propagam consequências perversas sobre um importante setor de infraestrutura. Esse quadro “conjuntural” tende a se agravar pelo aumento da micro e minigeração distribuída, acompanhando tendência mundial de redução de vendas de energia no modelo de negócios tradicional de utilities.
Os desequilíbrios observados são um testemunho de que não cabe a priori traçar fronteiras ou erguer barreiras para a reestruturação do setor elétrico. A introdução de uma adequada matriz de alocação de riscos deve constituir a base de uma necessária reforma setorial no Brasil.
Estamos diante de uma oportunidade única de revisitar o modelo do setor de forma construtiva, realinhando os mecanismos e criando criar transparência na formação de preços. Dessa forma, agentes e financiadores poderão participar do mercado, conscientes de riscos e retornos disponíveis; dos direitos e obrigações a eles inerentes.
Joísa Dutra é Diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (Ceri) da FGV-RJ e ex-Diretora da Aneel