Opinião

Usinas hidrelétricas e a questão indígena

A coluna bimestral de Jerson Kelman

Por Redação

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A Constituição veda a remoção compulsória de grupos indígenas de suas terras (art. 231, § 5º). Esse conceito foi reafirmado pela subscrição do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (Decreto 5.051/2004), que estabelece o direito de veto das comunidades indígenas à construção de hidrelétricas quando houver necessidade de reassentamento da comunidade. Nos outros casos há obrigação de consulta à comunidade, acompanhada pela Funai (Lei 6.001/1973), com transparência de informações, tempo suficiente para a compreensão dos temas debatidos e, acima de tudo, respeito à cultura e às tradições específicas da comunidade afetada. 

Há que se buscar uma solução que garanta a participação da comunidade nos resultados da atividade econômica e que seja aprovada pelo Congresso Nacional, como previsto na Constituição (art. 231, § 3º). O propósito é assegurar melhoria na qualidade de vida da atual e das futuras gerações de indígenas, e na percepção deles próprios, não na nossa. É o que vem sendo feito no Canadá: os representantes da comunidade indígena Crees e o governo de Quebec assinaram acordos em 1975 e em 2002 para construção de novas usinas em troca de vultosas compensações, a serem desembolsadas não imediatamente, mas ao longo de 50 anos.

Mas – importante repetir –, se não houver reassentamento, não há poder de veto. Nesse caso, aplica-se a regra válida para todos os brasileiros, de prevalência do interesse público sobre o particular. 

Os isolacionistas dirão que se trata de um conflito entre o interesse público da comunidade indígena e o interesse particular do “empreendedor”. É uma visão limitada, porque não enxerga que disponibilizar energia elétrica para o desenvolvimento econômico e social de todos os brasileiros é também uma forma de atender, e muito, ao interesse público. Por isso, na maioria dos casos o “empreendedor” é o próprio governo, pelo menos na fase de estudos, quando ocorrem as negociações. Com uma visão mais abrangente seria possível utilizar potenciais hidráulicos em áreas hoje inacessíveis, com resultados benéficos tanto para as próprias comunidades indígenas quanto para o resto da sociedade. 

No entanto, como o diabo mora nos detalhes, é preciso antecipar os próximos lances. Suponho que os que preferem manter os indígenas isolados dos malefícios de nossa civilização agirão para “plantar” indígenas nos locais onde se encontram potenciais hidráulicos. Talvez eu esteja vendo fantasmas, mas convém haver uma definição legal para o significado de “reassentamento de comunidade indígena”, a fim de evitar futuras discussões judiciais.

Um bom exemplo de interminável discussão é a Ação Civil Pública contra a construção de Belo Monte, impetrada em 2006 por Funai e Ministério Público, tendo o Ibama como réu. Seria natural que visões conflitantes de duas instituições do Poder Executivo, Ibama e Funai, fossem resolvidas por processo administrativo interno do próprio Executivo. Mas, ao contrário, foram levadas para a Justiça. É como se o coronel, ao discordar da ordem do general de avançar pela esquerda, resolvesse não apenas avançar pela direita mas também bombardear as tropas do outro coronel que acatou as ordens do general.

Não é salutar para a democracia que o governo internalize as contradições da sociedade. Em meus sonhos, os dirigentes de todas as instituições do Executivo são trancados numa sala e só saem dela quando aprovarem conjuntamente uma lista de empreendimentos para produzir e transportar a energia elétrica de que o país precisa nos próximos dez anos.

Como não é exequível que os milhares de procuradores e promotores que compõem o MP também fossem trancados nessa sala, tenho um segundo sonho: assim como alguns membros do MP defendem os supostos interesses dos indígenas de não se contaminarem com os males de nossa civilização, seria ótimo que outros se interessassem em defender a empregabilidade e boa qualidade de vida para todos os brasileiros. São interesses difusos da sociedade que só se materializam com energia elétrica. 

 

A coluna de Jerson Kelman é publicada a cada dois meses
E-mail jerson@kelman.com.br

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