Opinião
Leilão de energia de reserva: razões, funções e perspectivas
O setor elétrico brasileiro (SEB) encontra-se em fase de transição de uma matriz predominantemente hidrelétrica para uma matriz hidrotérmica. A ampliação da capacidade instalada do sistema hidrelétrico desde os anos 1980 não vem sendo acompanhada pelo aumento do volume dos reservatórios. Esse descompasso "força" e induz o aumento da participação de termelétricas (UTEs) na matriz.
Duas são as principais causas para tal descompasso. A primeira foi o processo de privatização do setor elétrico, que praticamente paralisou os estudos do potencial hídrico das bacias dos principais rios ainda não explorados, em especial na região Norte. Como esses estudos são complexos e longos, o atendimento da demanda por energia tendeu para as UTEs, que são construídas em menos tempo e não exigem estudos e volume de investimento como as hidrelétricas.
A segunda - e mais importante - causa do gap entre novas usinas e menores reservatórios foi a aprovação, a partir da Constituição de 1988, de uma nova legislação ambiental. Especificamente em relação ao SEB, esse novo marco legal lançou as bases para minimizar os impactos da construção de hidrelétricas sobre o meio ambiente, e a maior restrição é em relação à área de alagamento dos reservatórios.
Umas das principais conseqüências da diminuição relativa dos reservatórios em relação à capacidade instalada e ao aumento do consumo de energia elétrica é a diminuição do planejamento plurianual da operação. Como resultado, o SEB fica cada vez mais exposto ao risco hidrológico, ou seja, às incertezas em relação ao volume de chuvas no período úmido, entre dezembro e abril. Até os anos 1980, dada a relação entre potência e reservatórios, a operação do sistema contava com energia acumulada que permitia enfrentar maiores períodos críticos de seca.
Desde os anos 1990, porém, essa possibilidade vem diminuindo, e o sistema elétrico fica cada vez mais dependente do nível pluviométrico do período de chuva no tempo "t". Assim, o planejamento tem como horizonte temporal até o período "t+1". Ou seja, o planejamento no uso dos reservatórios, de plurianual, passou a bianual.
Esse novo status foi constatado em novembro de 2007. Nesse mês, o volume de chuvas situou-se cerca de 50% abaixo da média histórica que vem sendo coletada desde 1930. O agravante, e que demonstra o grau de exposição ao risco hidrológico, é que no período úmido de 2006-2007 o volume de chuvas foi de tal ordem que praticamente todas as UHEs verteram, quando o nível de reservatórios chegou a 88% nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.
No entanto, este volume de energia acumulada não foi suficiente para atender à demanda no período seco e chegar a um nível de reservatórios suficiente para suportar a diminuição das chuvas em novembro e dezembro. A alternativa para superar o problema foi o acionamento das termelétricas, mesmo tendo que incorrer em tarifas mais caras.
Objetivando mitigar o risco hidrológico e incorporar a bioeletricidade na matriz elétrica, o Ministério de Minas e Energia (MME), através de Aneel e EPE, acrescentou um novo tipo de leilão à estrutura de funcionamento do SEB. Trata-se do leilão de contratação de energia de reserva, regulamentado pelo Decreto 6.353/2008, cuja primeira edição será realizada este mês. O decreto define energia de reserva como a destinada a aumentar a segurança do Sistema Interligado Nacional (SIN), a partir da oferta de energia proveniente de usinas especialmente contratadas para este fim.
Há uma clara diferença em relação às UHEs e UTEs contratadas via leilão de energia nova. Nestes, o contrato está diretamente associado a uma estimativa de demanda futura - de três e cinco anos - das concessionárias de distribuição, criando-se vínculos entre a futura oferta com a previsão de consumo via contrato de fornecimento, no qual são definidas as tarifas, a custo de fatores (sem impostos e encargos), e a quantidade de energia ofertada.
O foco na biomassa de cana de açúcar deve-se a uma característica relevante: o seu grau de complementaridade com as UHEs. Do processo produtivo do açúcar e do álcool são gerados os insumos energéticos utilizados na produção elétrica: o bagaço e a palha da cana. O período típico da safra de cana é entre os meses de maio e novembro, o que coincide com o período seco do sistema elétrico, quando os reservatórios são inexoravelmente depreciados.
Assim, a entrada dessas usinas na matriz elétrica trará uma economia externa muito positiva e importante, incluindo o impacto na formação do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que é extremamente sensível ao nível dos reservatórios, o que explica seu acentuado grau de volatilidade. Afinal, as usinas que vencerem o leilão serão chamadas a operar na base, criando, elas sim, energia de reserva nos reservatórios.
A efetiva participação das usinas de biomassa da cana na matriz elétrica, contudo, encontra algumas barreiras que precisam ser superadas. Até o momento tem havido uma considerável inércia dos agentes do setor sucroalcooleiro que podem investir nessa atividade econômica. Uma primeira explicação para a falta de interesse está associada ao fato de que a comercialização de energia elétrica não é o core business desses agentes. No entanto, no processo produtivo, as usinas de cana de açúcar são autoprodutoras de energia elétrica, o que pode significar uma vantagem e indução para produzir para o SEB.
Esta perspectiva é mais forte para as novas plantas, que podem introduzir inovações tecnológicas nas caldeiras, tornando-as mais eficientes na produção de maiores excedentes elétricos. O principal entrave às usinas de biomassa de cana, e certamente o mais relevante, é a tarifa definida como preço-teto no leilão de reserva. Esta variável é que permite definir a taxa de retorno média para esses empreendimentos. No Proinfa e no leilão de energia (nova) renovável, os valores máximos das tarifas não foram suficientes para atrair o interesse do setor sucroalcooleiro.
O setor trabalha, na média, com taxas de retorno estimadas em 25% na produção de álcool e de açúcar. Os preços-tetos definidos até agora não são compatíveis com a taxa de retorno do setor e não estimulam os agentes a investir na produção de um bem cuja taxa média de retorno do investimento se encontra na casa dos 12%. A justificativa dos agentes do setor sucroalcooleiro é que o preço premium oferecido pelo governo não viabiliza economicamente a geração de bioeletricidade. É mais lucrativo investir na expansão da produção de açúcar e álcool do que em eletricidade.
A fim de superar a restrição dada pelo preço-teto, foram incorporados no leilão de energia de reserva mecanismos que podem permitir um preço premium mais atrativo para o setor sucroalcooleiro. A questão que se colocou foi buscar uma forma de dar uma tarifa atrativa, mas sem ferir e impactar a modicidade tarifária, um dos pilares centrais do atual modelo.
Na realidade, a modicidade transcende o SEB, já que ela faz parte das preocupações do Banco Central e do Ministério da Fazenda em função da interface que tem com o principal objetivo da política macroeconômica, ao menos do BC, que é a estabilidade da moeda. A forma encontrada para que a tarifa da energia de reserva viabilize a entrada das usinas de biomassa de cana e não impacte a modicidade tarifária foi fazer com que todos os agentes que consomem energia elétrica paguem pela tarifa de reserva.
Dessa forma, o pagamento da tarifa de energia de reserva difere das tarifas dos leilões de energia velha e nova, que ficam restritas ao mercado cativo. Como todos os agentes irão pagar pela energia de reserva, o valor final da tarifa ficará diluído. O mecanismo de cobrança será o seguinte: o custo da contratação de energia de reserva será repassado aos consumidores finais de energia elétrica do SIN através do repasse do Encargo Energia de Reserva, a ser pago pelos agentes de distribuição e demais consumidores na CCEE.
Um outro mecanismo é que as usinas vencedoras do leilão de reserva firmarão contratos com o sistema elétrico, via CCEE, e não com distribuidoras ou consumidores livres específicos. Nesses termos, e a título de conclusão, o termo energia de reserva não tem a conotação tradicional de energia que funcione como backup do sistema. Isso porque a bioeletricidade contratada possui despacho inflexível, que independe do nível dos reservatórios, já que ocorre por ordem de mérito econômico, poupando conseqüentemente os reservatórios.
Desta forma, a bioeletricidade deve ser interpretada como energia adicional ao sistema, no qual a energia térmica já contratada funcionará, esta sim, como backup. Uma das conseqüências mais visíveis da adição da bioeletricidade será a diminuição da depreciação dos reservatórios no período seco, contribuindo para a redução da volatilidade do PLD, o que irá dar mais estabilidade econômica e financeira ao setor elétrico, em especial ao segmento do mercado livre.
Nivalde J. de Castro é professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel)