“Competição sem igualdade de condições traz muita distorção”

Revista Brasil Energia | Entrevista

“Competição sem igualdade de condições traz muita distorção”

Presidente da Abrage, Marisete Pereira defende condições equânimes entre as fontes nos leilões regulados e aponta até 86 GW adicionais de potencial hídrico, com ênfase em repotenciações, reversíveis e novos aproveitamentos

Por Liana Verdini

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Marisete Pereira, presidente da Abrage (Foto: Larissa Lapim)

As geradoras hidrelétricas estão animadas para o próximo LRCap, marcado para março, e há espaço para a geração hídrica praticamente dobrar a capacidade instalada no Brasil nos próximos anos. Essa é a avaliação de Marisete Pereira, diretora presidente da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage) nesta entrevista à Brasil Energia.

A associação mudou sua sede de Belo Horizonte para Brasília no início de 2024, fato relevante para reconquistar a proeminência das hídricas na expansão da matriz elétrica, logo depois de ter contratado a ex-secretária-executiva do Ministério de Minas e Energia em novembro de 2023, levando consigo os mais de 35 anos de experiência no setor elétrico.

Nessa entrevista, ela fala sobre o potencial do setor hidrelétrico a ser explorado, a atuação da Abrage para inserir as reversíveis no planejamento como alternativa ao curtailment, a capacidade da indústria brasileira para suprir com equipamentos e serviços os novos projetos hídricos e defende com energia a isonomia de condições entre todas as fontes geradoras de eletricidade, sem subsídios para qualquer delas.

As hidrelétricas voltam a um leilão regulado depois de longo período ausentes. Não porque não queriam, mas porque não eram listadas para habilitação. O que, na sua opinião, fez o governo mudar essa orientação?

No primeiro leilão que o Ministério de Minas e Energia realizou, em 2021, não se tinha maturidade suficiente para colocar o produto hidrelétrico para participar do certame. Então, de fato, o LRCap de 2026 marca a retomada da participação de grandes hidrelétricas em leilões regulados.

E o que mudou nesses cinco anos?

As hidrelétricas são essenciais, principalmente nesse momento em que há uma grande necessidade de potência, de flexibilidade, serviços que as hidrelétricas prestam para garantir a estabilidade, a confiabilidade ao sistema. Porque as hidrelétricas fornecem energia de forma rápida e flexível e garante esse fornecimento em situações de variações relevantes do consumo ou da oferta. Como, por exemplo, no horário de ponta, no fim do dia, quando a demanda aumenta e a geração, como a solar, deixa de contribuir para o sistema. Portanto, o papel das hidrelétricas é e sempre foi fundamental para garantir a estabilidade do fornecimento de energia.

Esses atributos adicionais das usinas hidrelétricas – flexibilidade, confiabilidade, despachabilidade a qualquer momento, enfim – a senhora vê disposição do governo de reconhecê-los, a ponto de valorá-los, de alguma forma?

Nesse leilão em que esse produto vai ser contratado, os próprios estudos da EPE, como o Plano Decenal de Expansão 2034 e o Plano da Operação Energética (PEN), do ONS, publicado recentemente, são claros na indicação de que o sistema precisará, cada dia mais, de oferta adicional de potência para garantir o atendimento às demandas de energia elétrica, em especial nos horários de maior consumo. Esses estudos já apontam a necessidade de potência a partir de 2026. A não realização do certame em 2026 poderia trazer riscos à segurança energética e ao atendimento ao ponto de carga nos próximos anos, podendo até gerar sobrecustos aos consumidores. Importante destacar que as hidrelétricas estavam prontas para participar do LRCap já em 2025, com os projetos aprovados pela Aneel, licenciamento ambiental emitido, declaração de reserva de disponibilidade hídrica também emitida pela ANA. Ou seja, as hidrelétricas continuam prontas e aptas para participar do leilão em 2026 com as regras definidas pelo Ministério de Minas e Energia sem questionamentos judiciais.

A Abrage transferiu sua sede de Belo Horizonte para Brasília ano passado. Até que ponto essa mudança foi fator para a volta das hidrelétricas aos leilões?

Estar em Brasília, obviamente, nos aproximou dos principais centros de decisão do setor elétrico: Ministério, agências reguladoras e o Congresso. Essa maior proximidade tem possibilitado, de forma mais tempestiva e adaptativa, a apresentação de contribuições técnicas para a concepção e o aprimoramento das políticas públicas em benefício da sustentabilidade do setor como um todo.

Essa presença também ajuda na contribuição do setor para a reforma do setor em curso...

Temos estado presencialmente nas discussões e isso tem facilitado muito o diálogo com as autoridades, levando as demandas e as preocupações do setor em relação às necessidades de mudanças, já que a última grande reforma ocorreu há 20 anos, com a Lei 10.848.

Para o LRCap 2025, a EPE havia identificado 12 hidrelétricas com poços disponíveis, total ou parcialmente, para receberem novas unidades geradoras (UGs). Nem todas se habilitaram ao leilão. Muda o cenário em 2026?

Segundo os estudos elaborados pela EPE, existe um potencial de 7,2 GW em poços vazios nas usinas existentes, sem considerar possíveis ampliações de casas de forças. Portanto, com a reabertura do cadastramento de usinas pela EPE, para o LRCap de 2026, é possível que mais empreendimentos sejam cadastrados, além dos 12 projetos inscritos para o LRCap de 2025, que totalizaram 5,5 GW. A minuta de portaria de diretriz sistemática publicada pelo MME para o LRCap 2026 prevê apenas um produto hidrelétrico, com início de suprimento em julho de 2030. Mas acreditamos que alguns projetos possam entrar em operação ainda em 2029 e as regras propostas já preveem essa possibilidade de antecipação em caso de reconhecimento de necessidade e aprovação pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico.

Como a Abrage se mobilizou para isso?

Na Consulta Pública 194 de 2025, realizado pelo MME, a Abrage solicitou a inclusão de um outro produto hidrelétrico, com início de suprimento em julho de 2029, justamente pelo interesse das associadas em participar ativamente desse leilão.

Nesse leilão de 2026 as hidrelétricas vão disputar com térmicas a carvão e térmicas a gás. A senhora acredita que essa é uma disputa justa?

Temos um país com uma diversificação de fontes que poucos países no mundo dispõem. Hoje, com essa ampliação muito expressiva das fontes intermitentes ou fontes não despacháveis, a matriz está precisando de recursos firmes. Vou colocar diferente: será que as hidrelétricas são competitivas em relação às usinas a carvão e a gás? Se tivermos um planejamento equilibrado, toda e qualquer fonte é importante. Mas o que é mais importante é que as fontes possam competir em igualdade de condições, sem subsídios. O que hoje traz muita distorção é uma competição sem igualdade de condições. Por exemplo, as hidrelétricas desempenham um papel fundamental no atendimento à ponta de carga graças à sua capacidade de geração rápida e flexível, que é o que as fontes intermitentes não têm. Mas hidrelétricas não têm subsídios. Ao contrário, pagam royalties e a outorga pelo uso do bem público. Essa competição tem que ter igualdade de condições. Mesmo assim, a gente acredita que as hidrelétricas serão bastante competitivas nesse leilão em relação às usinas a carvão e a gás.

Já se configura um cenário de disputa entre BESS e usinas reversíveis. Há pleito da Abrage para que as reversíveis entrem no próximo leilão de armazenamento junto com as baterias?

Sim, a gente tem trabalhado bastante para a inserção dessa tecnologia na matriz. As reversíveis podem contribuir para a flexibilidade do sistema ao possibilitar o armazenamento de energia nos momentos de baixa demanda e liberar quando a demanda é elevada. E a tecnologia de armazenamento é muito necessária nesse momento de sobreoferta de energia. A Abrage tem atuado junto ao Ministério, promovendo seminários e outros eventos e também tem colaborado nas consultas públicas realizadas pela Aneel para inserir essa tecnologia no sistema brasileiro. Essa é uma tecnologia já utilizada por outros países por quase um século. E vem se expandindo. Há atualmente cerca de 190 GW em capacidade instalada no mundo, utilizando essa tecnologia, e até 2030 serão instalados mais de 90 GW. O Brasil precisará de diferentes soluções de armazenamento para garantir a segurança do fornecimento de energia no futuro. Baterias e sistemas de armazenamento hidráulico são tecnologias complementares e podem ser implementadas no sistema. Ambas as tecnologias são necessárias para o enfrentamento do curtailment.

Com reversíveis e novos projetos hidrelétricos, a senhora acredita que o Brasil possa voltar a ser um hub mundial de desenvolvimento tecnológico da geração hidrelétrica?

Acredito que sim, até porque a gente dispõe de 12% da água doce do planeta. A Abrage entende que a hidreletricidade foi e continua sendo a fonte de geração de energia elétrica mais importante para o sistema elétrico brasileiro. Ou seja, o pilar da segurança energética e da manutenção da renovabilidade da matriz. Ela foi base para a sustentação dessa expansão de outras fontes renováveis, como a solar e a eólica, ao oferecerem flexibilidade, armazenamento e confiabilidade ao sistema. Temos mapeados 7 GW em ampliações além de 11 GW de aumento de capacidade em repotenciações das unidades geradoras. Temos 38 GW em cenário bastante conservador de armazenamento hidráulico, considerando o parque instalado de usinas hidrelétricas existentes de 110 GW. E mais 30 GW em fase de estudos e processo de licenciamento ambiental para novos aproveitamentos hidrelétricos em bacias que têm hoje menor impacto ambiental.

Isso é suficiente para reativar o desenvolvimento tecnológico?

Teria que ter a vontade do Executivo de colocar esses 30 GW no planejamento e a gente trabalhar na atualização dos estudos econômicos e socioambientais de aproveitamentos. Resumindo, esse conjunto possibilitaria colocar na matriz mais 86 GW, além dos 110 GW de potência atual. E tudo isso utilizando 100% da nossa indústria de equipamentos e serviços.

Pelos estudos, a maior parte do potencial hidrelétrico brasileiro está na Região Amazônica. A senhora acha que ainda há espaço para as usinas com reservatórios no Brasil?

O próprio Executivo tem sinalizado sobre a necessidade de voltar a fazer investimentos em hidrelétricas com reservatórios por serem fundamentais para a regularização nas diferentes regiões do país. Os 30 GW a que me referi não estão em locais de mais resistência do ponto de vista ambiental, como em área de conservação, por exemplo. São usinas tipo a Tabajara, no estado de Rondônia, e outras no Mato Grosso. Poderia se trabalhar na modernização do licenciamento ambiental, de modo a viabilizar esses projetos. O ministro de Minas e Energia, há um mês, disse que o próprio presidente Lula havia sinalizado sobre a necessidade de se construir novas hidrelétricas com reservatórios. Não dá para fazer uma usina como se fez há 30 anos. Temos vários exemplos no mundo que se pode fazer com a participação das comunidades, apoiando a construção desses aproveitamentos.

A senhora pode me dar um exemplo de lugar no mundo onde as comunidades... 

Acho que foi Quebec, no Canadá, a última grande usina onde as comunidades têm uma participação. Dessa forma, além de receberem royalties, elas têm uma participação no resultado do projeto.  

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