Revista Brasil Energia | Hidrelétricas, Água e Sustentabilidade
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"Separar lastro de energia é cada vez mais inadiável"
Em meio à expectativa e pressão crescentes por uma nova reforma do setor elétrico, a Brasil Energia foi conversar com Jerson Kelman, um dos especialistas mais reconhecidos no país pelas suas passagens como gestor da ANA, Aneel, ONS, Sabesp e Light.
Kelman considera que o setor elétrico pode corrigir boa parte das distorções separando lastro e energia e remunerando ambos pelo que oferece ao consumidor. E explica. Desde que o suprimento hidrotérmico do passado evoluiu para o complexo sistema atual, em que as fontes intermitentes, solar e eólica, passaram a responder por parte significativa da oferta e o mercado livre atrai mais e mais adeptos, o consumidor não compra apenas MWh.
“No passado, não se levava em conta nem se remunerava fatores como despachabilidade, inércia e flexibilidade, porque eram intrínsecos à geração hidrelétrica e termoelétrica. Mas as fontes eólica e solar não podem garantir esses atributos extremamente essenciais à estabilidade do sistema e crescem sua participação na matriz todos os dias. Em outras palavras, antes a métrica Reais por MWh satisfazia. Hoje não mais”.
Para ele, perdemos a oportunidade de ir em frente com a CP33, em 2017, e se não conseguirmos resgatar esse modelo dentro da reforma do setor elétrico será preciso encontrar uma alternativa. Então ele apresenta a ideia inovadora de uma Unidade Geradora Ideal, capaz de reunir e oferecer todos os atributos para um suprimento estável constituída pelo consórcio de vários geradores das diversas fontes associados.
“Nenhuma fonte geradora reúne todos os atributos necessários a um suprimento estável” disse. “A hidrelétrica é a que mais atributos reúne, mas ainda assim pode parar por falta d’água”, reconheceu. A Unidade Geradora Ideal seria, portanto, uma usina hipotética, definida em lei a partir de uma proposta da Aneel, um espelho para que qualquer gerador possa garantir suprimento estável ao oferecer energia para a população. E como nenhuma fonte é capaz de oferecer todos esses atributos, os agentes geradores - eólicos, solares, hidrelétricos e térmicos das diversas fontes – seriam levados a se associar livremente, como movimento de mercado, para se complementar entre si e garantir o suprimento.
“Uma coisa é o lastro, que garante a infraestrutura operacional do sistema e precisa ser remunerado por todos os consumidores, do ambiente cativo e livre. A outra é a energia com que cada gerador é remunerado conforme sua produção média, ao longo dos 365 dias do ano”.
E como essa Unidade Geradora Ideal sairia do papel?
Nesta entrevista concedida à jornalista Liana Verdini, Kelman explica melhor o conceito e também ressalta os diversos benefícios para a sociedade do uso múltiplo das águas, um bem que a cada dia se torna mais precioso, em consequência das mudanças climáticas.
O Brasil sempre foi conhecido por seu imenso manancial hídrico. Mas com as mudanças climáticas, o senhor acha que o Brasil corre algum risco mantendo sua matriz energética majoritariamente hidrelétrica, que hoje está em 52%?
Não. As usinas hidrelétricas possuem uma série de atributos que muitas outras fontes de energia não têm. E essas outras fontes de energia, nomeadamente eólica e solar, não são despacháveis e nem têm a inércia e a flexibilidade que as usinas hidrelétricas têm. Essas novas fontes seriam inviáveis participando da matriz elétrica brasileira na proporção que já participam se no passado não tivéssemos construído as hidrelétricas. Então as hidrelétricas eram importantes no passado e são mais ainda importantes no presente.
Mas a inconstância das chuvas nos mananciais e as crises hídricas não deixam o sistema elétrico do país vulnerável?
Eu penso que as hidrelétricas têm, de fato, um calcanhar de Aquiles, que são as eventuais crises hídricas. Em casos de falta da água, temos que recorrer a outras fontes energéticas. No passado, essas outras fontes eram as termelétricas. Hoje tem um mix: termelétricas e as novas fontes renováveis, que são as solares, eólicas e as baseadas em biomassa. De fato a participação das hidrelétricas está diminuindo, mas creio que a necessidade dos serviços que as hidrelétricas prestam fará com que daqui a algum tempo se volte a construir novas hidrelétricas.
Já faz um tempo que o país não tem projetos para hidrelétrica de maior porte...
Em um artigo que escrevi recentemente, chamei a atenção para o fato de as fontes energéticas terem características distintas. E é um equívoco nivelar todas elas usando uma única métrica, de real por MWh, isto é, pelo custo de produção da energia. Essa é a métrica do passado. Aliás, é a única métrica relevante do passado porque as hidrelétricas prestavam vários outros serviços que não eram nem sequer notados. Agora, quando o sistema começa a ter dificuldades por falta de inércia ou falta de flexibilidade, esses outros atributos se tornaram relevantes.
E aí há dois caminhos possíveis para corrigir o erro histórico de ter essa única métrica: ou você desenvolve novas métricas e reconhece que os atributos da hidrelétrica não são só energia barata, mas também a capacidade de despachar a usina na hora que se quiser, a possibilidade de a usina sair do zero a 100% da potência em alguns segundos, a capacidade de a usina ter inércia, que é fundamental para manter a frequência e a tensão do sistema.
Essas coisas todas ninguém notava. Elas existiam, mas não eram reconhecidas. Então uma maneira de fazer é agora começar a descrever a fonte geradora não por um escalar, não por uma única medida, não pela quantidade que produz, mas também por todos os outros atributos da geração. Essa é uma maneira.
A outra maneira seria a agência reguladora, a Aneel, descrever uma unidade de geração como uma entidade que tem todas as propriedades necessárias, algumas até que nem uma hidrelétrica tem, como a capacidade de gerar energia tenha ou não tenha água. Então, por meio de uma proposta de lei, se aprovada, a Aneel poderia na regulamentação conceber uma unidade geradora ideal, que tenha todos os atributos possíveis.
E deixar que o mercado, isto é, os agentes geradores, decidam como comercialmente se associar, como se complementar. Por exemplo, uma usina solar, que não é despachável nem tem inércia, procura uma usina hidrelétrica ou uma termelétrica para se associar. Desse modo, os próprios agentes do setor formariam conglomerados para se apresentarem ao sistema elétrico como uma Unidade Geradora Ideal, esse descritivo legal que vem com todos os atributos descritos. Eu penso que essa segunda alternativa é muito interessante.
O senhor acha que a gente está caminhando para isso? Quer dizer, o governo já começa a se preocupar com essa intermitência do sistema? Porque a gente tem 52% de hidrelétrica, que é despachável a qualquer momento, mas tem a eólica e a solar que são intermitentes. Acabou o sol, acabou o suprimento das solares. Acabou o vento, não tem mais carga.
Eu não sei se o governo está preocupado com isso. Mas certamente a Aneel, o ONS, a EPE estão. E acredito que como no governo tem técnicos muito capazes, acredito que também o Ministério esteja preocupado sim.
Temos uma matriz renovável bastante considerável, com uma intermitência natural devido às novas fontes geradoras. Agora com as mudanças climáticas também atingindo as hidrelétricas, qual deveria ser o papel dos órgãos formuladores da política do setor elétrico?
No passado, a escolha do mix energético foi sempre pautada pelo planejamento técnico. A EPE dizia qual era o mix com diferentes fontes, diferentes atributos. Agora temos uma invasão do Legislativo, do Congresso Nacional, em temas que os congressistas não têm, na média geral, conhecimento técnico suficiente.
É como se os congressistas fossem decidir como é que devem ser feitas as operações cardíacas. Certamente não parece razoável que operações cardíacas sejam decididas por comitês do Congresso Nacional. De igual maneira não é razoável que procedimentos da operação do sistema elétrico, que é igualmente complexo, sejam decididos no Congresso. Mas estão sendo.
Como estão sendo, o caminho que eu estou me referindo, já que a CP 33 não passou lá em 2017, seria a criação de uma unidade geradora ideal, a UGI. Lamentavelmente eu não acho que os bem-intencionados vão conseguir vencer a aliança entre parlamentares e os lobbies, que olham só parte, só seus interesses, e não os interesses coletivos. Então, razoável seria deixar que o próprio mercado, os próprios agentes, se organizem para oferecer essa tal da unidade geradora ideal.
É uma solução interessante porque combina formas de geração de energia de maneira a manter a geração contínua...
É despachável, flexível, com inércia, com tudo, que nem mesmo a hidrelétrica tem. A hidrelétrica é a que mais se aproxima de ter todas essas características, mas nem ela, nem as térmicas, ninguém tem todas as características reunidas.
O senhor acha que as usinas a fio d’água precisam ser reconfiguradas para ter um reservatório e enfrentar as mudanças climáticas?
Não, isso não é viável. Não é viável construir um reservatório em uma usina que já existe. O que se pode fazer é voltar a examinar o balanço entre impactos ambientais e sociais associados ao reservatório, que são sempre na escala local e são em geral negativos. E balancear isso com os impactos na escala nacional ou mesmo global, que são em geral positivos.
Não é só por ser energia renovável. Mas é uma forma de geração que alavanca outras fontes também renováveis, como solar e eólica, mas sem a despachabilidade das hidráulicas.
Agora, as mudanças climáticas, sem dúvida, impõem muitas modificações na operação do sistema hidrelétrico. E aí não são só as mudanças climáticas. São também as mudanças do uso do solo. Porque se no passado as águas dos rios eram utilizadas na geração de energia elétrica quase que exclusivamente; e hoje não mais.
Na Bacia do São Francisco, por exemplo, grande parte da diminuição da vazão do rio é devida ao uso da água para irrigação do oeste da Bahia. Por outro lado, a substituição de florestas por agricultura também modifica o ciclo hidrológico dentro da bacia hidrográfica. Em alguns lugares, as mudanças no uso do solo fazem com que diminua a vazão disponível para a produção de energia elétrica, como no caso do São Francisco. Em outros casos, aumenta, como no caso da Bacia do Paraná. Porém, com aumento da variabilidade temporal das vazões.
O senhor comentou em alguns artigos sobre as hidrelétricas reversíveis, que talvez fosse um caminho. Mas não se esbarraria na legislação ambiental? Há dificuldade de criar reservatórios no Brasil e já não temos aqueles grandes projetos de hidrelétricas. O senhor acha viável a gente ter mais reservatórios para armazenar mais água e gerar mais eletricidade em momento de escassez hídrica, por exemplo?
As usinas reversíveis não têm o objetivo de aumentar a produção de energia. Ao contrário, elas diminuem a produção de energia, em média, porque elas consomem energia. E nem sequer elas são um antídoto para a seca. Não é para isso...
Na realidade, as usinas reversíveis competem com as baterias. Por exemplo, a geração solar só produz energia durante o dia, com o sol, e seria preciso armazenar o excesso de energia em baterias, que são ainda muito caras. Ou se pode usar uma usina reversível, com dois reservatórios: um inferior e um superior. Então, na realidade, se usa mais energia para bombear a água e fazê-la subir. Assim, uma usina reversível consome energia em média.
Mas ela usa energia quando ela é barata, quando há mais oferta no sistema. E ela produz energia quando já não tem mais sol. É um complemento muito interessante para solares e eólicas, como se fosse uma bateria.
Mas aí não esbarramos na questão ambiental, por precisar construir mais um reservatório?
Eu não vejo nenhuma dificuldade ambiental nas reversíveis. Porque os conflitos da construção de reservatórios são associados às usinas tradicionais, que constroem uma barragem em um rio existente. E no rio existente tem população e tem atividades ali.
No caso de uma reversível, suponhamos o caso mais comum: já existe um reservatório no rio e agora se quer simplesmente construir um reservatório superior. Esse novo reservatório não é mais no rio. Na realidade, é preciso procurar nas montanhas algum local em formato de cumbuca para que seja fechado e se possa jogar água ali.
Então, escolhendo direito, o impacto ambiental é muito pequeno, porque não está confinado ao rio. Você pode vasculhar em ampla região onde você vai fazer o reservatório superior. Será certamente num local desabitado ou onde more pouca gente.
Existe um modelo chamado Hera, desenvolvido pela PSR, que é capaz de identificar esses locais todos. Temos sorte porque os centros de alto consumo de carga são junto à Serra do Mar – São Paulo, Rio de Janeiro, principalmente – e se pode concentrar as reversíveis nessa região. Tem afinidade com os locais. Eu não vejo conflito, nem ambiental, nem social.
Como já foi dito, os recursos hídricos têm usos diversos. Antes eram primordialmente para a geração de energia e hoje temos a captação de água para abastecimento das cidades, para a agricultura, para a indústria, para o transporte de bens. O que pode ser feito para salvaguardar a água?
Parte da minha vida foi dedicada a tratar dessa questão. Me dediquei à criação da ANA, e depois fui seu primeiro presidente, justamente para tratar desse assunto: o uso múltiplo das águas.
Eu diria que podemos lamentar um pouco como foi nossa história do uso dos rios. Desde o Código de Águas, de 1934, os rios foram vistos apenas como recursos naturais para produção de energia elétrica. Os chamados inventários eram feitos para identificar os locais com vocação para construção de usinas hidrelétricas. Isso foi feito rio por rio, da nascente à foz.
E como o objetivo era a produção de energia elétrica, naturalmente o setor foi escolhendo construir usinas nos melhores locais, nas diversas bacias hidrográficas, sem preocupação de implementar todos os aproveitamentos de uma bacia. Assim, os rios que drenam o Planalto Central, por exemplo, poderiam ter recebido usinas visando não apenas a geração de energia, mas também o controle de enchentes e a navegação. Facilitaria o escoamento da produção de grãos do Brasil Central. Nos Estados Unidos, o rio Mississipi escoa toda a produção do Centro-Oeste por via fluvial. Nós não temos um rio com eclusas em todas as barragens para poder escoar. Perdemos esse bonde.
Há algo que possa ser feito agora?
O que podemos fazer agora é estreitar o vínculo entre a ANA, que cuida do uso múltiplo dos recursos das águas das bacias hidrográficas, e as entidades do setor elétrico, especificamente a Aneel, EPE e ONS, que olham a questão do uso da água na escala do país – porque o sistema está interligado via linhas de transmissão – para avaliar a melhor utilização.
Na prática isso significa que ANA e ONS devem criar – e já estão fazendo isso – uma força-tarefa que examine uma a uma as restrições operativas das usinas hidrelétricas para uso de outro setor.
Por exemplo, é muito comum uma usina ter restrição de vazão mínima defluente. Frequentemente, isso não está associada realmente a uma restrição relacionada à quantidade de água, e sim ao nível de água a jusante da usina para permitir a captação que abastece, por exemplo, uma cidade. Trata-se de problema de simples solução. Se tiver que segurar água no reservatório, baixando o nível do rio a jusante, a tomada de água da cidade pode ser auxiliada por uma bomba flutuante que jogue água dentro da adutora.
Existem soluções que custam dezenas de milhares de reais e causam benefício ao consumidor de energia elétrica de bilhões de reais. Quando eu era diretor-geral da Aneel briguei muito com o Ibama que exigia uma vazão mínima de Sobradinho de 1.300 m³/s. E a vazão mínima histórica era de 550 m³/s. Então, se assegurava a jusante um nível mínimo que a natureza não havia assegurado. Porém, ao custo de esvaziar o reservatório de Sobradinho.
Depois de algum tempo foi necessário ligar as térmicas. Se gastou uma fábula porque não houve uma análise holística. Essa análise holística é que eu acho que tem que ser feita conjuntamente pela ANA e pelo ONS.