Opinião
Joisa Dutra e Lívia Amorim: Alocação de Riscos e Reformas no Setor de Energia no Brasil
O ano de 2018 traz expectativas importantes para o setor de energia no Brasil. A equipe a frente do Ministério de Minas e Energia e entidades responsáveis pela governança do setor na administração do Presidente Michel Temer formularam propostas para diversos segmentos. Alguns resultados já estão sendo colhidos, como se observa pelos leilões de exploração de petróleo; entretanto, dois marcos regulatórios importantes estão pendentes de apreciação no Congresso Nacional1: (i) o Projeto de Lei de reforma do setor elétrico brasileiro, resultado das discussões feitas no âmbito da Consulta Pública n.º 33/2017; e (ii) o Projeto de Lei de reforma do marco regulatório do gás natural, resultado das discussões promovidas pelo Gás para Crescer.
Apesar de importantes mudanças debatidas nestas iniciativas precisarem de aprovação legislativa para serem implementadas, alguns aperfeiçoamentos debatidos extensivamente com os stakeholders envolvidos já estão em discussão e devem ocupar a agenda nos próximos meses. A efetividade dos esforços feitos, no entanto, depende de melhorias na alocação de riscos nestas indústrias. Exemplos de medidas nessa direção seriam a revisão das penalidades aplicáveis por falta de combustíveis na geração termelétrica a gás natural de modo a harmonizar as realidades dos setores elétrico e de gás natural - essencial no processo de transição energética em curso no mundo e no Brasil e a transferência de controle societário como alternativa à extinção da outorga (mecanismo de saída).
Alocação Adequada de Riscos
Há muito se debate a necessidade de uma melhor disciplina de risco no setor elétrico brasileiro, seja na modelagem dos leilões e contratos de concessão, seja no processo de ajuste de posições dos agentes no mercado ao longo do tempo. A esse respeito, a própria Nota Técnica submetida à Consulta Pública 33/2017 que versava sobre a reforma do setor elétrico explicitava a necessidade de melhorar o processo, ainda que não tenha sido apresentada solução para o tema. Em retrospectiva, vê-se que, na tentativa de contornar a falta de mecanismos que permitissem aos agentes identificar, valorar e ajustar suas posições para mitigar ou realocar riscos, foram privilegiados o endurecimento de regras e de penalidades que acabaram por engessar atividades e em alguns casos – como na geração termelétrica a gás natural – afastar a entrada de novos.
De forma prospectiva, tanto o Programa Gás para Crescer, como a CP n.º 33/2017 buscam propiciar um ambiente onde os agentes consigam (i) entender de forma mais clara os riscos assumidos; (ii) acessar informações que permitam precificá-los adequadamente; (iii) ter previsibilidade sobre a aplicação das regras; e (iv) flexibilidade para reajustar posições no mercado.
Elementos da Visão de Futuro do Gás para Crescer e da CP n.º 33/2017
Gás para Crescer | CP n.º 33/2017 |
Concorrência e Sinais econômicos | Incentivos à eficiência nas decisões empresariais de agentes individuais |
Flexibilidade e Disponibilidade | Sinalização econômica como vetor de alinhamento entre interesses individuais
e sistêmicos |
Alocação Eficiente de Riscos | Alocação adequada de riscos para permitir sua gestão individual, com responsabilidades bem definidas |
Penalidade por Falta de Combustível
No caso do gás natural, uma importante barreira identificada para a expansão da geração termelétrica no Brasil é o atual desenho da penalidade por falta de combustível. A REN n.º 583/2017 estabelece como cláusula obrigatória dos contratos de compra e venda de gás para geração de energia a penalidade atrelada ao Preço de Liquidação de Diferenças (“PLD”). Uma vez aplicada, a arrecadação deve ser revertida para modicidade tarifária. Significa dizer que além das penalidades e demais consequências – a exemplo da redução de garantia física - aplicáveis ao gerador em função da indisponibilidade, também o supridor de gás está sujeito a uma penalidade setorial para a falha de suprimento.
Estudo do FGV CERI intitulado “Geração Termelétrica a Gás Natural: comprovação de disponibilidade de combustível” mostra as consequências do endurecimento das regras por falta de combustível dissociado da existência de um mercado de gás capaz de oferecer a flexibilidade de suprimento ao preço demandado pelo setor elétrico. Dentre elas, tem-se: (i) a uma expansão pouco expressiva da capacidade instalada a gás; e (ii) a uma penalização desproporcional aos agentes já em operação. Estes foram onerados pela necessidade de gerenciar risco excessivo, com baixa previsibilidade e, na maioria das vezes, sem alternativas para mitigação.
Figura 1 - Potência adicionada aos sistemas elétricos nos leilões de energia nova e de reserva. Participação das termelétricas a gás natural (2000 - 2016) - Fonte FGV/Ceri
Esse tema despertou atenção no âmbito do Gás Para Crescer. Através da Resolução CNPE n.º 18/2017 determinou-se à ANEEL e à ANP que regulassem a penalidade por falta de combustível. O resultado desse processo deve garantir equilíbrio entre segurança do suprimento de energia e as variáveis que podem afetar a oferta do combustível em uma dinâmica normal de mercado – cujas estratégias de mitigação devem ser negociadas entre os agentes.
O tema foi inserido na Agenda Regulatória da ANEEL para o 1º semestre de 2018 e é esperado que produza incentivos para que os agentes alinhem negocialmente os interesses na cadeia, levando a punições setoriais tão somente para aquelas situações com impactos sistêmicos. A própria revisão do regulamento que trata de penalidades pela ANEEL (a REN n.º 63/2004, em discussão na Audiência Pública n.º 77/2011) já conta com nova versão. Em linha com o observado para a revisão da penalidade por falta de combustível, a norma resultante deve ser capaz de incentivar uma adequada prestação do serviço.
Transferência de Controle como Alternativa à Caducidade
Por fim e, em linha com o observado neste artigo, uma importante alteração feita na legislação do setor elétrico tem levado o regulador setorial a ponderar a adequação entre meios e fins mesmo em cenários mais extremos, de possível extinção da outorga. Nesse contexto, a Lei n.º 13.360/16 estabelece alternativa à extinção da outorga. Para tanto, deve ser apresentado plano de transferência do controle societário através do qual se comprova que a assunção pelo novo investidor garante uma adequada prestação do serviço. Esta hipótese inclusive já foi recentemente aplicada pela ANEEL nos casos da Eletrosul e da Renova.
Assim, para que se possa alcançar os objetivos manifestados pelas agendas de reformas promovidas para o desenvolvimento do setor energético brasileiro, espera-se que a agenda de transformações na regulação setorial prevista para 2018 também reflita essas preocupações, com uma melhor disciplina de risco e mecanismos de mercado que permitam aos agentes tomar e reajustar suas decisões de forma eficiente. Ou seja, é preciso que essa reorientação dos setores, fruto de amplo debate, seja mais que uma agenda de futuro, mas que venha a guiar também as decisões que já estão hoje sendo tomadas.
As propostas para desenvolvimento do mercado de gás natural e reforma do setor elétrico, encaminhadas para aprovação legislativa, ainda não deixam claro quais serão os mecanismos com os quais os agentes ao longo da cadeia de geração de valor contarão para melhor gerenciar seus riscos; entretanto, já é possível registrar que há avanços, caso das penalidades aplicáveis a geração termelétrica a gás natural em caso de falta de combustível e da possibilidade de transferência de controle como alternativa à extinção de outorga desde que comprovadas as condições para garantir adequadas prestação de serviços. Essas medidas são bem-vindas. Cabe atentar, contudo, que reformas bem sucedidas dependem de modo inequívoco da capacidade de produzir melhorias nos processos de alocação de riscos.
[1] As propostas feitas no Gás para Crescer estão em tramitação no substitutivo ao PL 6407/2013. As propostas feitas no âmbito da Consulta Pública MME n.º 33/2017 já foram consolidadas pelo Ministério de Minas e Energia, mas até a data deste artigo ainda não haviam sido enviadas ao Congresso.
Joísa Dutra é diretora e pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação da Infraestrutura (Ceri) da FGV; Lívia Amorim é pesquisadora do Ceri/FGV e sócia do escritório Souto Corrêa, Cesa Lummertz & Amaral Advogados
Este artigo expressa a opinião das autoras, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.