
O risco de uma Vitória de Pirro no setor gasista
Opinião
O risco de uma Vitória de Pirro no setor gasista
A manutenção do texto da Minuta de Resolução sobre a classificação dos gasodutos de transporte, colocada em Consulta Pública pela ANP, tem potencial para paralisar o setor e equivale a uma expropriação de ativos públicos estaduais por entes privados

A expressão “Vitória de Pirro” remete ao rei grego do Epiro que, mesmo vencendo uma batalha contra os romanos, sofreu perdas tão devastadoras em seu exército que a vitória foi equivalente a uma derrota.
Essa metáfora se encaixa com precisão na Consulta Pública nº 01/2025 da ANP que, se mantido o texto atual da minuta de resolução, causará danos ao pacto federativo, à segurança jurídica e ao comprometimento da eficiência do sistema e dos investimentos futuros de todo o setor gasista no país.
Inicialmente, cabe esclarecer que a proposta da ANP se baseia em uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) superficial, que não atende aos seus propósitos, na medida em que não realiza uma avaliação dos impactos na eficiência da distribuição de gás junto aos estados, detentores das concessões.
A ANP justificou a não realização de uma análise dos sistemas de distribuição de gás, em prol do tempo, ignorando os mais de quatro anos que passaram desde a promulgação da Lei 14.134/2021.
Outra deficiência percebida na AIR foi a utilização, como base, de alguns exemplos da regulação da União Europeia - UE, um modelo que embora tenha seus méritos, não pode ser transplantado diretamente para o Brasil, sem considerar o nosso arcabouço constitucional, federativo e nossas características geográficas.
O modelo norte-americano, não analisado com a devida profundidade na AIR, está muito mais próximo da realidade brasileira em termos de repartição de competências, podendo trazer uma base melhor para adaptação e harmonização regulatória no Brasil.
É certo que a regulação na UE pode dar bons exemplos que poderiam ser aproveitados no setor de transporte de gás no Brasil, como a figura de um Gestor Técnico do Sistema (GTS) e metodologias eficientes para o cálculo tarifário do transporte.
Estas referências deveriam ser aproveitadas no Brasil, porém no caso da classificação de gasodutos os países membros da UE tem modelo com único regulador nacional, enquanto o Brasil apresenta clara repartição constitucional de competências entre União e Estados, conforme o §2º do art. 25 da Constituição Federal e do artigo que trata do monopólio da Uniao - art. 177, inciso IV.
Isso significa que, diferentemente da UE, as redes de distribuição de gás canalizado no Brasil são reguladas pelos Estados, cabendo à União a competência sobre os gasodutos de transporte a montante dos city gates, o que nos assemelha, nesse aspecto, aos EUA.
A Lei 14.134/2021 e a Resolução CNPE nº 3/2022 deixam claro também que cabe ao MME e à ANP promoverem a harmonização com os Estados, o que também não ocorreu previamente à elaboração da minuta. Além do que, o art. 27, inciso II do Decreto 10.712/2021 cita expressamente a adesão voluntária dos Estados a respeito de diretrizes da ANP.
Cabe mencionar que a AIR listou, dentre as alternativas para enfrentamento do problema regulatório: (i) alternativa de não ação; (ii) alternativa de edição de ato não normativo; (iii) alternativa de edição de ato normativo.
A alternativa escolhida pela AIR foi a de edição de ato normativo, ou seja, a elaboração da minuta de Resolução, pois entendeu que a alternativa de não ação é a manutenção do status quo, mesmo que essa alternativa trouxesse a elaboração de Manual de Boas Práticas, o que estaria alinhado ao CNPE e MME.
A falta de diálogo prévio pela ANP com os Estados ficou bastante evidente nas inúmeras contribuições que constam de relatório parcial da agência, principalmente, pela grande preocupação quanto à inconstitucionalidade e violação do Pacto Federativo.
A ineficiência da proposta da ANP
A proposta da ANP, se aplicada aos atuais sistemas de distribuição, demandaria a construção de inúmeros city gates, a um custo que ultrapassaria a casa de bilhão de reais, representando um gasto adicional, sem nenhuma eficiência para o sistema. Isso porque vários gasodutos, que atualmente são de distribuição, passariam a ser de transporte, elevando o custo do gás ao consumidor final e impedindo a capacidade de expansão e de reforço de rede da distribuição.
Para exemplificar, estimo que, apenas no Rio de Janeiro, o número de city gates necessários para atender as condições propostas pela ANP, sem causar desabastecimento do mercado, no mínimo, triplicaria em todo o Estado. Vale lembrar que cada city gate pode custar entre 30 a 50 milhões de Reais. A proposta da ANP, também triplicaria os gastos das distribuidoras, com instalações de regulagem e medição nos city gates.
Somente no estado do Rio de Janeiro, estimo que mais de 25% das redes de distribuição atuais se enquadrariam nas condições que a ANP quer impor como gasodutos de transporte. A grande maioria desses gasodutos de distribuição se encontram em áreas urbanas onde existe a necessidade de odorizar o gás e a presença de equipes de urgência de pronta resposta.
Curiosa seletividade na interpretação das normas legais
A proposta da ANP, amplamente apoiada pelas transportadoras, parece buscar, na prática, a limitação da atuação das distribuidoras estaduais, o que trará uma grande ineficiência e maiores custos em toda a cadeia de movimentação do gás.
A proposta ainda prevê a possibilidade de se reclassificar dutos de distribuição, o que equivaleria a uma expropriação de ativos públicos estaduais por entes privados, um absurdo jurídico, regulatório e político.
Vale lembrar que a Lei nº 14.134/2021 trata, exclusivamente, das atividades econômicas a montante dos city gates, incluindo o transporte de gás, não abrangendo a distribuição. A tentativa de transbordar essa competência pode configurar, inclusive, usurpação de função regulatória e violação da hierarquia normativa.
Chama atenção o comportamento contraditório da associação que representa as transportadoras de gás - ATGas. Defende, com veemência, a segurança jurídica e a rigidez contratual no que se refere aos Contratos Legados, isto é os contratos bilaterais, firmados sem a devida transparência e sem a realização prévia de uma revisão tarifária integral, em linha com as boas práticas de governança regulatória. Porém, no caso da classificação dos gasodutos, a ATGas parece disposta a atropelar as normas, inclusive constitucionais em prol de um ato normativo, desalinhado com os princípios da eficiência e das boas práticas.
O que poderia estar por trás desses movimentos
Com o fim iminente dos contratos legados Malha Sudeste e Malha Nordeste, que se encerram em dezembro de 2025, e diante de um cenário de estagnação da demanda, as transportadoras parecem jogar suas fichas em alguns planos de investimentos de sustentabilidade duvidosa. Isso se dá em razão das incertezas quanto a evolução da demanda nos próximos anos, em particular, para geração termelétrica.
CME cobra diálogo prévio da ANP com os Estados
A boa notícia é que, na audiência pública realizada pela Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados (CME), ficou claro que a ANP não buscou um diálogo com os Estados para a harmonização no setor, como exigem a Lei 14.134 e a Resolução CNPE nº 3/2022.
Cabe ressaltar que, embora a ANP possua autonomia administrativa, ela está vinculada ao MME como responsável pela execução da política nacional do setor. Sendo assim, o MME estabelece as diretrizes gerais e a ANP atua na regulação e fiscalização das atividades setoriais.
A audiência pública realizada na CME deixou ainda evidente a ausência de coordenação entre a ANP e o MME na medida em que a ANP lançou a CP 01/2025 sem ao menos esperar pelas conclusões da Tomada Pública de Contribuições - TPC realizada pelo MME sobre a questão da harmonização regulatória entre União e Estados. Esse fato por si só já seria suficiente para a ANP dar um passo atras.
A harmonia federativa em sério risco
O Brasil viveu duas décadas de harmonia regulatória entre transporte e distribuição. Essa harmonia não pode ser quebrada por interesses de determinados agentes, sob o risco de comprometer mais uma década de desenvolvimento do setor.
Infraestruturas de distribuição são passíveis de regulação pelos Estados e não pode haver subjetividade nesses critérios nem invasão de competência ou submissão das agências reguladoras estaduais à ANP e vice-versa.
Qualquer tentativa de reclassificação autocrática pela ANP, sem base legal, poderá abrir espaço para longas demandas judiciais inclusive para eventuais ações visando cobrir eventuais prejuízos aos entes federativos.
Estamos diante de um momento crítico. Se a ANP insistir em manter sua proposta original, mesmo diante de tamanhas críticas e riscos, poderemos ter uma espécie de Vitória de Pirro no setor: uma decisão que desorganizará e levará a judicialização, na medida em que rompe o pacto federativo. A esse ponto, restará ainda como solução, para se evitar a judicialização do setor, a aprovação pelo Congresso de emenda supressiva do inciso VI do artigo 7º da Lei 14.134/2021.
O setor de gás já perdeu muitas oportunidades. Não podemos nos permitir correr o risco de vermos mais uma década perdida, especialmente enquanto o mundo avança rapidamente em direção a matrizes energéticas mais eficientes e sustentáveis.