Mais transparência para a revisão tarifária do transporte de gás
Opinião
Mais transparência para a revisão tarifária do transporte de gás
Reestruturação da agenda regulatória da ANP, com prioridade para a revisão da metodologia de retribuição do transporte de gás natural, traz inflexão relevante ao ambiente regulatório do setor
A nova postura da Agência Nacional de Petróleo, Biocombustíveis e Gás Natural (ANP) representa uma mudança relevante para a regulação no transporte de gás, não só pela forma como passou a conduzir o tema, quanto pela firmeza em decisões recentes, o que sinaliza uma atuação mais técnica, assertiva e alinhada às boas práticas de governança regulatória.
Nos últimos dois meses, as ações da ANP revelam um esforço claro de reposicionar a agência no seu papel de protagonista na regulação da atividade de transporte de gás. A recente decisão de determinar que a Nova Transportadora do Sudeste (NTS) inicie imediatamente as obras da Estação de Compressão de Japeri, sob pena de substituição por outro agente, evidencia esse movimento.
Esse episódio, por outro lado, vem a reforçar a necessidade de se colocar, na agenda do gás, a discussão sobre a conveniência de se estabelecer por aqui um Gestor Técnico do Sistema, nos moldes do GTS espanhol ou do brasileiro Operador Nacional do Sistema Interligado (ONS).
Esta é uma medida importante para aprimorar a gestão do sistema, favorecendo um ambiente para a multiplicidade de agentes operando ativos no transporte de gás.
O mesmo rigor aparece no desenho do processo de revisão tarifária do transporte de gás. Ao dividir a revisão em três etapas (WACC, BRA e RMP), a ANP cria condições para uma análise mais profunda e estruturada, evitando decisões precipitadas que poderiam cristalizar distorções históricas. A medida alinha expectativas de mercado e reforça a autoridade regulatória, frequentemente questionada em ciclos anteriores.
E é sobre esses temas que o texto desta coluna vai buscar contribuir com algumas reflexões.
Valoração da BRA: a etapa mais determinante
A segunda etapa da revisão — a valoração da Base Regulatória de Ativos (BRA) — é a mais aguardada pelo mercado. O motivo é direto: ela definirá, em grande parte, o nível da Receita Máxima Permitida (RMP) no ciclo 2026–2030.
O fato de a ANP haver antecipado que investimentos não autorizados não poderão compor a BRA é um avanço fundamental. Reduz incertezas, afasta passivos regulatórios implícitos e induz disciplina na execução de novos projetos.
Resta, entretanto, esclarecer o tratamento do sustaining capex realizado entre 2017 e 2025, período em que todos os custos das transportadoras estavam integralmente cobertos pelos contratos legados. Esses gastos, por lógica regulatória, não deveriam ser automaticamente remunerados sem auditoria externa.
Além disso, o setor acompanha de perto a definição sobre a abrangência da auditoria. A recomendação mais consistente - e alinhada à prática europeia - é de que a avaliação abranja 100% dos ativos da malha, também pela metodologia de Custo de Reposição Novo (CRN), e não apenas os vinculados a contratos que expiram em 2025. Isso permitiria, finalmente, consolidar uma BRA coerente, transparente e tecnicamente fundamentada.
O WACC: redefinindo a remuneração do transporte
A etapa da consulta pública 12/2025 concluída em 25 de novembro, referente ao WACC, trouxe avanços, mas também abriu debates. A atividade de transporte de gás natural é, reconhecidamente, a de menor risco dentro da cadeia, devido ao regime de revenue cap e aos contratos ship or pay, que praticamente eliminam risco de volume.
Assim, a remuneração deve estar condicionada à eficiência e ao cumprimento de parâmetros de qualidade, o que implica risco regulatório limitado e, portanto, com um custo de capital inferior ao observado na distribuição, em que a atividade absorve integralmente variações de mercado e de volume.
Mesmo assim, as transportadoras sugeriram uma taxa de 9,41%, incompatível com a natureza da atividade e desconectada de referências internacionais para setores de risco semelhante.
A ANP, por sua vez, propôs um WACC inicial de 7,47%, considerando estrutura de capital de 70% em equity e 30% de dívida. Embora essa taxa já possa ser considerada bastante razoável, práticas adotadas por reguladores europeus, indicam a utilização de estruturas de 60%-40% e 50%-50%.
Os impactos da adoção de percentuais mais ajustados às boas práticas seriam: i. com 60%-40% (indicada pela consultoria ECA, contratada pela ATGas), o WACC proposto pela ANP cairia para 7,1%, abaixo dos 7,25% vigentes e ii. com 50%-50%, ficaria em 6,8%.
A própria nota técnica da ANP, a NT 2/2025/SIN, reconhece a necessidade de revisitar esse parâmetro. Ajustá-lo é fundamental para respeitar o princípio da modicidade tarifária e evitar remuneração excessiva, incompatível com o baixo risco da atividade.
O WACC é componente-chave na definição das tarifas de remuneração financeira do setor, sendo revisado periodicamente para refletir as condições de mercado. Um WACC superestimado resulta em tarifas excessivamente elevadas, incompatíveis com o princípio da modicidade tarifária e prejudiciais à competitividade da cadeia do gás natural.
A remuneração da atividade de transporte de gás deve obedecer a critérios de eficiência econômica, transparência, objetividade e não discriminação, assegurando a recuperação dos investimentos durante sua vida útil.
É necessário garantir ao agente regulado um retorno razoável sobre os recursos investidos, considerando custos necessários à atividade por uma empresa eficiente e bem gerida, sempre buscando o menor custo possível para o sistema de gás.
O nível de alavancagem de uma empresa afeta o custo da dívida. Nesse sentido, por um lado, quanto maior a classificação da dívida da empresa, menor a taxa de cobertura da dívida, o que afetará negativamente a qualidade do crédito e levará ao aumento do custo da dívida.
Implicações para investimentos e competitividade
A metodologia de retribuição do transporte é o ponto de convergência entre estabilidade regulatória, eficiência econômica e modicidade tarifária.
Um WACC superestimado ou uma BRA inflada impactam diretamente o custo do gás, reduzindo a competividade do gás e da indústria local.
Por outro lado, uma metodologia bem calibrada diminui assimetrias, incentiva investimentos eficientes e aproxima o país das melhores práticas internacionais.
A experiência europeia demonstra que marcos regulatórios estáveis e tecnicamente fundamentados reduzem litigiosidade, ampliam previsibilidade e atraem investimentos de longo prazo, elementos essenciais para o desenvolvimento do mercado brasileiro.
Outra questão importante é a da eleição do grupo de comparadores para se definir os diferentes elementos da metodologia. Reguladores europeus frequentemente combinam empresas dos setores de eletricidade e gás, dada a semelhança estrutural e o fato de muitas atuarem em ambos os segmentos o que torna mais assertiva as escolhas.
Comparadores são utilizados por exemplo no nível de alavancagem que afeta diretamente o custo da dívida: classificações mais baixas elevam o custo de financiamento. O percentual de alavancagem utilizado por reguladores europeus varia, mas, na Espanha, no ciclo atual (até 2026), utiliza-se 50%.
Comparações internacionais mostram valores entre 50% e 60% de capital próprio, embora alguns países apresentem médias inferiores. Ressalte-se que alguns reguladores ajustam a taxa dentro do ciclo sempre que há mudanças significativas no mercado, como fez a CNMC espanhola em 2020, diante da volatilidade.
ANP: decisão estratégica
O faseamento da revisão em etapas — WACC, BRA e RMP — foi uma decisão prudente da ANP. A abordagem modular permite aprofundamento técnico, maior transparência e participação dos agentes do setor. Essa metodologia evita que decisões apressadas perpetuem distorções e garante um processo mais alinhado ao interesse público.
A revisão que está em curso não é apenas um ajuste técnico. Ela representa uma oportunidade histórica de reequilibrar a remuneração do transporte de gás natural no Brasil, corrigir falhas acumuladas e criar um ambiente regulatório mais moderno, transparente e competitivo.
E isso é estratégico porque a demanda de gás, depois de alcançar seu pico em 2015, vem sofrendo uma forte retração, tendo regredido aos níveis de 20 anos atrás, enquanto o mercado global de gás vem crescendo.
É indiscutível que as tarifas de transporte de gás no país estão muito acima do razoável, numa parcela que representa 20% do custo do gás no city-gate (ponto de transferência de custódia do gás), fruto dos contratos legados, o que acaba comprometendo o desenvolvimento sustentável do setor de gás natural no Brasil.
Por isso, como ficou claro nas consultas e audiências públicas deste semestre, todo o setor acompanha o processo com máxima atenção. É bastante clara para o mercado a noção de que a forma como a ANP irá consolidar essa metodologia definirá não apenas o nível tarifário dos próximos anos, mas também a trajetória de eficiência, expansão e sustentabilidade do setor do gás no país e a competitividade da indústria local e a geração de empregos.
O transporte de gás é peça-chave para alcançar a plena liberalização do mercado no país e esse objetivo passa pela realização de uma revisão integral das tarifas, onde é sempre recomendável observar as boas práticas internacionais.
A história do gás nesse país foi construída a base de um ambiente harmônico, de colaboração e de diálogo entre a Petrobras e as distribuidoras estaduais. Essa harmonia se viu abalada com agentes privados que aparentemente não compartilhavam da mesma cultura de diálogo e procuraram pautar a regulação seguindo tão somente sua interpretação das normas.
Nesse sentido, a mudança de postura da ANP, além de novos ares ao setor, traz a esperança de que, conforme estabelece o Art. 45 da lei 14.134/2021, ANP e Estados passem a se articular de forma mais efetiva na busca da harmonização e o aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria de gás natural.



