
Opinião
Contratos legados, revisão tarifária e o papel da ANP
Expectativa é que o processo conduzido pela ANP não se atenha apenas aos contratos legados da NTS e da TAG que vencem em 2025. Contratos sem aderência à regulação vigente não devem continuar onerando o consumidor até 2041

Depois de anos e anos de expectativa, no final de março, finalmente, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) decidiu fazer o que já deveria ter feito há muito tempo: dar publicidade a uma parcela dos documentos que serviram de base para a venda das transportadoras NTS (Nova Transportadora do Sudeste) e TAG (Transportadora Associada de Gás).
Na ocasião, a diretora substituta da ANP, Mariana Cavadinha, e relatora da proposta, defendeu a medida com a seguinte fala: "A publicidade permitirá que a sociedade civil e especialistas possam analisar os dados e identificar informações relevantes utilizadas na fixação da tarifa, contribuindo para um ambiente econômico mais transparente e eficiente.”
Embora as memórias de cálculo consistam basicamente em fluxos de caixa livre que definiram as tarifas de transporte dos contratos legados, com essas informações disponíveis ficou bastante claro e evidente tudo aquilo que vários segmentos do mercado de gás tanto falavam: a margem atualmente recebida pelas empresas transportadoras de gás não partiu de um modelo regulatório baseado nas boas práticas.
A resolução da ANP, a RANP nº 15/2014, que fixava os princípios da regulação das tarifas de transporte de gás natural com base em modelo de fácil compreensão – o de Receita Máxima Permitida (RMP) -, deixava claro que as Revisões Tarifárias Integrais (RTI) deveriam ser realizadas com periodicidade máxima de 5 anos, visando, de um lado, manter o equilíbrio econômico-financeiro da transportadora e, de outro, captar as eficiências da gestão do negócio em benefício dos consumidores.
O princípio de todo o cálculo tarifário, importante esclarecer, é a Base Regulatória de Ativos (BRA). No caso em questão, o que tivemos foi um processo de desverticalização a partir de abertura do mercado de gás no país e, portanto, a venda dos ativos de transporte inquestionavelmente deveria ter sido precedida de uma auditoria e de uma reavaliação dos ativos das transportadoras pela ANP. E isso, claro, com a divulgação dos documentos.
A publicidade dos documentos, ainda assim, não é totalmente esclarecedora. Sobram lacunas e muitas dúvidas surgiram durante a análise das informações. Por exemplo: as planilhas não seguem um padrão quando se avaliam os investimentos informados, a depreciação, os Custos de Operação e Manutenção (O&M), as Despesas Gerais e Administrativas (G&A) e as taxas internas de retorno de cada contrato legado. São itens que acabam tendo impacto significativo na Receita Máxima Requerida e na modicidade tarifária do transporte que, no Brasil, superam em muito às verificadas em outros países.
Apesar de louvável, a (tardia) transparência na divulgação pela ANP de algumas informações dos contratos legados pode ser considerada intempestiva, principalmente se considerados que se tem pela frente um processo de revisão tarifária que precisa ser finalizado ainda em 2025. Ou seja, o tempo é bastante curto.
Entender o passado é fundamental
A divulgação dos fluxos de caixa deixou evidente que a ANP não avaliou, num prisma regulatório, se os termos dessa negociação e dos contratos eram aderentes à regulação vigente e às boas práticas regulatórias e de governança da agência.
Na prática, uma atividade regulada foi negociada como um ativo financeiro em que se procurou maximizar o valor da venda com reflexos diretos nas tarifas pagas pelos consumidores.
Ao que parece, coube à ANP, na ocasião, somente o papel de referendar uma negociação realizada fora dos seus escritórios e que deixou um pesado ônus para toda a sociedade.
Em uma tentativa de atenuar o ambiente, um alto executivo do setor de transporte de gás recentemente declarou em um evento que não se deveria “fazer arqueologia regulatória”, como se a arqueologia não fosse justamente a busca de conhecimento e compreensão sobre aquilo que ainda está pouco claro. Em resumo: suas palavras parecem corroborar ainda mais para a necessidade de uma revisão imediata da receita máxima permitida dos transportadores e, inclusive, a oportunidade de olhar para o passado, pois um pesado ônus foi pago, o que, se confirmado, deveria ser compensado no futuro.
Na prática, estamos falando de um negócio entre agentes privados, que deveria ser regulado pela ANP, onde acordaram condições que jogaram para o mercado uma pesada conta a pagar, sem a devida análise regulatória prévia pelo regulador e a discussão aberta com a sociedade.
Tivesse sido a transação realizada com ativos de produção e comercialização de gás, as condições pactuadas não causariam maior preocupação, uma vez que esses segmentos estão submetidos a um regime de concorrência, o que não ocorre com o transporte de gás que, embora esteja sob regime de autorização desde a Nova Lei do Gás, apresenta características de monopólio e, portanto, precisa ser regulado de forma adequada e transparente.
A análise dos fluxos de caixa mostra que houve casos de depreciação de ativos antes de sua entrada em operação dos gasodutos. Outro caso a observar é de um gasoduto que, ao que parece, não teria sido construído, mas ainda assim foi considerado nos fluxos de caixa com se tivessem operativos. Esse último diz respeito ao gasoduto Gasfor II, ativo considerado nos fluxos de caixa, mas que não estava totalmente construído, ou seja, aparentemente o consumidor pode ter pago nas tarifas por dutos que nem enterrados estavam por ocasião da venda da transportadora.
Essas questões precisam ser devidamente esclarecidas. Caso tenham gerado ônus indevido aos consumidores, sem dúvida esses valores devem ser devolvidos nas tarifas.
Os fluxos de caixa tornados públicos também demonstram alguns gasodutos com elevados custos, que não se pode afirmar que se trata de custos previstos ou dos efetivamente realizados. Da mesma forma, não se compreende o porquê das diferentes taxas de remuneração dos diferentes contratos, todas acima das que seriam arbitradas pela ANP num processo regular de revisão tarifária.
Não se trata, portanto, de fazer arqueologia regulatória, mas sim garantir uma justa remuneração ao operador, com aplicação de fatores de eficiência, garantindo que os consumidores possam pagar uma tarifa justa, determinada a partir do cálculo baseado em uma Base Regulatória de Ativos (BRA) conhecida e baseada em custos e depreciação adequados, gastos de O&M eficientes e taxas de retribuição compatíveis com a atividade e com as boas práticas regulatórias.
Hora de buscar solução
O transporte de gás é peça-chave para alcançar a plena abertura do mercado de gás no país. Estamos tratando de um elo da cadeia de fornecimento de gás que, em muitos países, é considerado um serviço público – o que deveria ser igual aqui no Brasil. Isso exige da ANP uma correta e transparente regulação.
Mas dificilmente veremos transparência na dimensão correta sob a sombra de um dos pontos mais nebulosos do mercado brasileiro de gás natural: os contratos legados de transporte celebrados entre a Petrobras e as transportadoras de gás. Logo, está mais do que na hora de tratar definitivamente dessa questão.
Não se pode deixar que contratos sem a menor aderência à regulação vigente e às boas práticas permaneçam onerando o consumidor até 2041. É um dever da ANP realizar uma Revisão Tarifária Integral envolvendo todos os contratos legados.
O ideal é que a ANP promova a exclusão dos contratos legados do cálculo tarifário e realize uma revisão quinquenal integral de tarifas, exatamente como prevê a legislação vigente e recomendam as boas práticas internacionais.
A realização em 2025 de uma revisão tarifária pela ANP deve passar, sim ou sim, pela inclusão de todos os contratos legados e não somente os contratos Malhas Sudeste da NTS e Malhas Nordeste da TAG que terminam em 31/12/2025.
Manter os contratos legados ainda por vencer significará perder a oportunidade de reduções mais significativas nas tarifas de transporte que, no caso da transportadora NTS, por exemplo, poderia resultar na metade da tarifa praticada, a depender das condições de mercado.
Ainda falando da NTS, cabe ressaltar que o contrato legado Malha Sudeste, que termina ao final de 2025, tem na sua receita um peso de apenas 1/3 do total dos contratos legados. Portanto, ainda que a receita do Malhas SE apresente uma queda no processo de revisão, o impacto global será bem menor.
A ANP, pelo princípio da transparência, precisa tornar público as propostas dos transportadores.
Cabe destacar que o Decreto 12.153 de 26/08/2024 estabelece em seu parágrafo 3º que os operadores das infraestruturas existentes submeterão à aprovação da ANP, no prazo de 180 dias, contados da data de publicação deste Decreto, proposta de base regulatória de ativos, calculada com metodologia amplamente reconhecida, que considere a depreciação do ativo, a amortização do investimento e a remuneração de capital.
O mencionado decreto estabelece ainda que a ANP poderá adotar valor transitório para base regulatória de ativos até a efetivação do disposto no § 3º e que, durante o período de transição, a taxa de remuneração poderá ser calculada com base em metodologia amplamente reconhecida, previamente aprovada pela ANP e condizente com as condições macroeconômicas do mercado de atuação e com os riscos da atividade.
Se quiser adotar no Brasil as boas práticas de governança regulatória, a ANP não tem outra alternativa senão a realização de uma Revisão Tarifária Integral do transporte. A agência tem plenas condições e ferramentas para alinhar a regulação do transporte de gás com as melhores práticas regulatórias.
E isso deve ser feito sem mais delongas, minimizando eventual período transitório e, o que é fundamental, com a máxima transparência.