Opinião

Defensor ou Criador de Mercado?

Os recentes movimentos da Petrobras colocam em dúvida se o Governo e o Congresso conseguirão, no médio e longo prazos, estabelecer limites de concentração, aumentar a concorrência e dar liquidez ao mercado de gás.

Por Bruno Armbrust

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Na última semana, duas matérias ganharam destaque no noticiário do mercado de gás no país. A primeira delas veio do Senado Federal, onde o senador Laércio Oliveira (SE) apresentou seu relatório sobre o projeto de lei PL 327/2021, com diretrizes legais para a realização de leilões de oferta de gás natural pelo agente dominante, visando a redução do alto nível de concentração atual do mercado.

A proposta estabelece que um comercializador de gás que ultrapassar o limite de 50% de concentração de mercado deve realizar um leilão para venda compulsória de pelo menos 20% da quantidade de gás natural excedente, observando as melhores práticas internacionais da indústria para programas de venda compulsória de gás natural.

Embora mereça maior detalhamento, iniciativas nessa linha foram aplicadas com êxito em países na União Europeia. Denominado de “Gás Release Program (GRP)”, esses programas foram fundamentais para reduzir a concentração de mercado e ampliar a concorrência em países europeus – conceito que deveria receber do Congresso e do governo o mais amplo apoio.

A outra notícia vem da Petrobras. A companhia informou que ajustará, mais uma vez, a sua política comercial para o gás, com redução de preços, medida que, ainda que traga algum alívio na conta de gás do mercado cativo, deve ser vista com certa cautela.

Reduções de preços são sempre bem-vindas, mas as mudanças sistemáticas da política comercial da Petrobras num curto espaço de tempo, somadas às declarações dadas de que a intenção da estatal é de ocupar “o mercado que puder ocupar”, antagoniza com a proposta contida no PL 327, bem como, com o que preconiza a resolução 03/2022 do Conselho Nacional de Política Energética ( CNPE), que estabelece diretrizes para o novo mercado de gás, voltadas à promoção da livre concorrência, à limitação da concentração e a adoção de boas práticas internacionais.

Não há dúvidas quanto à importância da Petrobras na história da indústria do gás no país, mas sua política comercial para o gás natural ao longo dos tempos teve uma característica ciclotímica. O resultado dessas constantes oscilações, ora com estímulos, ora com elevados preços ou com restrições da oferta ao mercado convencional, em razão de mudanças na conjuntura do setor, não desenvolveu o mercado em todo seu potencial.

Ao longo das últimas duas décadas, enquanto o setor elétrico usufruía do benefício de um gás inferior a 5 US$/MMBTU (fruto do Programa Prioritário de Termelétricas – PPT), a indústria petroquímica naufragava pelo elevado preço do gás. No mesmo contexto, outros segmentos da indústria enfrentavam dificuldades para competir com seus concorrentes em outros países que pagavam menos pelo gás. Algumas indústrias optaram pela biomassa em substituição ao gás natural e assim permanecem até os dias de hoje.

No caso da cogeração a gás natural, depois de um início bastante promissor, houve uma retração que se mantém até os dias de hoje, não chegando a 3% de participação no mercado de gás. Em alguns países na UE, a cogeração a gás natural chega a representar 20% do mercado de gás.

Com o mercado de GNV também não foi diferente. Nos últimos anos o gás veicular vem perdendo competitividade e agora começa também a enfrentar, além do etanol, a concorrência dos veículos híbridos e elétricos.

No conjunto dos mercados de maior consumo (industrial, grande comércio e veicular), os volumes atuais, comparados aos anos de maiores médias de consumo, demonstram uma retração de cerca de 17%, com uma queda na demanda próximo de 9 milhões de m³/dia.

Somente os mercados de pequeno consumo (residencial e pequeno comércio) tiveram um crescimento sustentável e contínuo, fruto das políticas comerciais e dos investimentos das distribuidoras. O mercado de pequeno consumo que há duas décadas não chegava a ter 2% de participação do consumo convencional, hoje já representa mais de 5%, tendo dobrado de tamanho.

A retração do mercado de gás natural nos últimos 10 anos fez o consumo do energético retroagir ao patamar de duas décadas atrás.

É notório que demoramos em seguir os passos de outros países que iniciaram a busca por uma maior competição nos mercados energéticos até o final do século passado. Perdemos uma primeira oportunidade em 2009 com a Lei do Gás nº 11.909/2009. Foram doze anos para a Lei nº 14.134 /2021, que irá para seu quarto ano de vigência, e o Brasil ainda se encontra distante das boas práticas internacionais e de um mercado concorrencial e aberto em relação ao gás natural.

Se desejarmos desenvolver o mercado de gás, precisamos avançar mais rápido na sua abertura, o que passa por iniciativas de desconcentração como a contida no PL 327/2021. A realização de leilões compulsórios pode ter um impacto ainda mais positivo se o percentual mínimo tiver relacionado ao nível de concentração do mercado, tomando como referência o índice Herfindahl Hirschman Index (HHI).

O HHI é amplamente utilizado na UE e em muitos países para medir o nível de concentração e o grau de concorrência e na aplicação das regras da defesa da concorrência e da regulação antitruste. Aumentos no índice HHI indicam um decréscimo na concorrência e um aumento da concentração de mercado, enquanto decréscimos indicam o oposto. Quando a concentração de mercado aumenta, a competição e a eficiência diminuem, aumentando as hipóteses de monopólio.

Um HHI abaixo de 1.500 indica um setor não concentrado. Um HHI entre 1.500 e 2.500 indica uma concentração moderada. Um HHI acima de 2.500 indica uma elevada concentração e uma menor competição. No Brasil, o mercado de gás apresenta um HHI superior a 6.000, numa escala máxima de 10.000, indicando estar muito concentrado.

Para o HHI do Brasil chegar a 1.500, a participação do agente dominante no mercado de gás teria que se reduzir dos atuais 70% para cerca de 30%. Essa redução deveria ser redistribuída entre, pelo menos, quatro a cinco comercializadores.

A título de comparação, podemos citar o HHI da Espanha e da Itália, que se situam, respectivamente, em 1.376 e 807. Na Espanha o agente dominante, que detinha mais de 80% do mercado antes do processo de abertura, hoje detém apenas 28%. No caso da Itália a redução foi ainda maior e hoje o agente dominante detém apenas 16% de participação do mercado de gás.

Isso só foi possível pela atuação firme dos governos, dos órgãos de defesa da concorrência e dos reguladores, e com iniciativas para redução do nível de concentração de mercado, como os programas de Gas Release.

A adoção do índice HHI, além de ser uma adequada ferramenta de medição, utilizada nas boas práticas internacionais, sinalizaria um norte mais claro sobre que grau de concorrência queremos alcançar no longo prazo.

Outra ferramenta que seria importante para agilizar um ambiente de efetiva concorrência no mercado de gás no país, e deveria ser considerada pelo Congresso e pelo Governo, seria a implementação da figura de um Criador de Mercado (market maker).

O Criador de Mercado existe em grande parte dos mercados europeus e visa dar liquidez ao mercado com a presença contínua de ofertas de compra e venda de gás por parte de alguns agentes habilitados. No caso dos agentes dominantes a participação é compulsória.

Iniciativas como a realização de leilões, previstos no PL 327/2021, a adoção do HHI com ferramenta de medição e de objetivo de concentração de mercado, e a implementação, na regulação, da figura de Criador de Mercado, permitirão uma maior rapidez na abertura do mercado de gás no país.

Todos esses elementos são fundamentais na abertura de mercado, que se tornará efetiva se todos os consumidores puderem ser elegíveis e houver um cronograma de migração compulsória dos médios e grandes consumidores ao mercado livre.

Os tempos mudaram e o mercado de gás no Brasil precisa avançar e se modernizar mais rapidamente, ampliando a real possibilidade de todos os consumidores poderem eleger seu fornecedor.

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