
Opinião
ANP cria risco de judicialização no setor de gás natural
Invertendo hierarquia normativa, agência reguladora ignora a Constituição Federal em proposta para regular gasodutos de transporte

Com quatro anos de atraso e em um momento inoportuno, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP decidiu propor novas regras para a classificação de gasodutos de transporte com uma minuta de resolução, colocada em Consulta Pública, que se mantida significará uma invasão das competências regulatórias estaduais.
A iniciativa da ANP se constitui numa tentativa impensável de regulação, por ela, do elo da distribuição de gás natural, algo que confronta com o Artigo 25, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1988, que afirma, categoricamente, ser a distribuição de gás competência exclusiva dos estados.
É o que diz também o Artigo 1º do Capítulo I da Lei 14.134 (Lei do Gás) que trata das Disposições Preliminares da Lei, a seguir transcrita:
“Esta Lei institui normas para a exploração das atividades econômicas de transporte de gás natural por meio de condutos e de importação e exportação de gás natural, de que tratam os incisos III e IV do caput do art. 177 da Constituição Federal, bem como para a exploração das atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural”.
Observa-se que o Artigo 1º, acima transcrito, faz referência a todos os elos da cadeia do gás, menos o da distribuição.
E não poderia ser diferente, tendo em vista o disposto na Constituição Federal, destacada em diversas partes da Lei 14.134, que não deixa dúvidas de que não cabe à ANP legislar sobre a distribuição de gás canalizado.
A inobservância às normas legais, somada a falta de compreensão de um sistema de distribuição, como também algumas conclusões errôneas do relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) acabaram levando à ANP a colocar em Consulta Pública uma proposta de minuta de resolução sobre classificação de gasodutos, com bases técnicas equivocadas e que invade a competência estadual, evidenciados, principalmente, no inciso IV do artigo 6º da minuta, que limita os gasodutos de distribuição a diâmetros inferiores a 8 polegadas.
Somente no Estado do RJ estimo que mais de 25% dos cerca de 6,5 mil km de gasodutos de distribuição se enquadrariam acima dos limites de diâmetro e pressão propostos pela ANP. Vale lembrar que os casos de pressões acima da proposta na minuta foram pactuados em contratos e condicionaram todo o planejamento da distribuição.
Mas não para por aí. Não bastasse achar que a distribuição poderia funcionar de forma eficiente limitada a gasodutos de 4 e 6 polegadas, a minuta em seu § 2º do artigo 6º ainda considera que dois gasodutos de 4 polegadas se equivalem a um de 8 polegadas, o que parece querer limitar reforços ou ampliações das redes existentes que somadas totalizassem 8 ou mais polegadas, ignorando que não é correto somar diâmetros, e muito menos, pressões.
A título de comparação, damos como exemplo um gasoduto de 8 polegadas operando a uma pressão de 35 bar, com outros dois gasodutos em paralelo de 4 polegadas, nas mesmas condições de pressão. Os dois gasodutos de 4 polegadas, somariam apenas 30% da vazão em relação ao de 8 polegadas, o que demonstra a inconsistência técnica do que é proposto na minuta.
A ANP parece ainda querer estabelecer uma espécie de submissão das agências reguladoras estaduais, atribuindo a si o direito de decidir sobre eventual necessidade de reclassificação de gasodutos de distribuição.
A proposta da ANP, se aplicada, inviabilizará todo o modelo de expansão da distribuição, com graves prejuízos para todo o setor, e tem um enorme potencial de estabelecer um novo conflito federativo, o que gera um indesejável clima de insegurança jurídica.
Será que a responsabilidade de realizar a harmonização regulatória entre União e Estados, contida na resolução 03/2022 do CNPE e na Lei do Gás, ficará finalmente com o Supremo Tribunal Federal (STF)?
Para quem observa as leis, cabe remarcar a Lei 9.478/1997, que dispõe sobre a política energética nacional e instituiu o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e a ANP. A Lei estabelece logo em seu 1º Capítulo os Princípios e Objetivos da Política Energética Nacional. Dentre eles estão:
- Proteger os interesses do consumidor quanto a preço;
- Incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural;
- Promover a livre concorrência;
- Atrair investimentos; e
- Ampliar a competitividade do País.
Porém, as resoluções do CNPE, que deveriam nortear a política energética nacional, parecem vir em último lugar ou simplesmente estarem esquecidas por uma parcela dos agentes do setor.
Tudo isso traz uma preocupante sensação de uma perigosa tendência de inversão na hierarquia das normas, que, aparentemente, coloca decisões autocráticas da ANP acima até mesmo da Constituição Federal e da Lei nº 14.134/2021 (Lei do Gás).
É uma lógica insensata.
Além de todo o mencionado acima, outros casos ilustram a reinterpretação da hierarquia:
Consulta pública em duplicidade:
- O Ministério de Minas e Energia (MME), cumprindo a Lei nº 14.134 e a Resolução CNPE nº 03/2022, lançou uma consulta pública para discutir a harmonização regulatória entre União e Estados.
- No mesmo período, ANP abriu a referida consulta, sem aparente alinhamento com a anterior, e com temas tratados pelo MME no outro processo.
Contratos Legados vs Constituição:
- Alguns agentes defendem os Contratos Legados com base no aval passado da ANP, quando o mercado ainda estava altamente verticalizado, mas contestam a constitucionalidade de projetos de gasodutos de distribuição, aprovados por agências reguladoras estaduais, com total e amplo respaldo legal.
- Defendem ainda a aplicação de novos critérios para ativos de transporte já totalmente depreciados cujos contratos legados vencem ao final de 2025, mas não para os contratos legados que se estendem por períodos posteriores.
A atividade de transporte, evidentemente, deve cuidar da movimentação de gás em gasodutos com característica troncal que transportam gás a grandes distâncias. Já a distribuição opera dutos de influência local, circunscritos ao âmbito estadual, em que não deveria haver interferência de normas federais.
Vale lembrar de uma disputa ocorrida entre a Transpetro (leia-se Petrobras) e a CEG (distribuidora do RJ), no final do século passado, quando as duas empresas constataram que tinham projetos concomitantes de construção de gasodutos: um de transporte e outro de distribuição, respectivamente.
O objetivo era levar gás à mesma indústria, que após anos, foi solucionada com a aquisição pela CEG do gasoduto de transporte da Transpetro.
Superado o mencionado conflito, podemos afirmar que passamos as últimas décadas em harmonia e sem regras de classificação de gasodutos.
Com a manutenção da proposta da ANP, o processo de harmonização entre União e Estados poderá acabar, mais uma vez, sendo decidido pelo STF, o que implicará em eventual paralisação de investimentos e mais atrasos no processo de abertura e desenvolvimento do mercado, com perdas de investimentos e empregos.
Logo, a ANP precisa agir de forma técnica e isenta, respeitando a Constituição e as normas federais e estaduais de forma a evitar repetir erros do passado.
Brasil precisa enfrentar o que é realmente importante
Desde a Lei do Petróleo de 1997, passando pela Lei do Gás de 2009 (que não viabilizou sequer um quilômetro de gasoduto de transporte), até chegarmos à Lei nº 14.134/2021, já se vão quase três décadas de expectativas frustradas. No caso da lei vigente, os avanços ainda são muito limitados quando comparados com experiências internacionais.
Não há dúvida de que a ANP tem grande responsabilidade por esses progressos estarem aquém do desejável. Ela também tem o papel de estimular a competitividade, o que não vem acontecendo por diversos motivos: ritmo insuficiente na produção regulatória, algumas decisões desalinhadas com as normas e a falta de prioridades na agenda regulatória e, agora, dando foco novamente em um tema conflituoso, com base em premissas equivocadas.
Portanto, a ANP deveria, neste momento, centrar sua atuação tomando por base os princípios estabelecidos na Lei de sua criação, a 9.478/1997. Ou seja, precisa enfatizar a necessidade de proteger os interesses do consumidor quanto a preço, promover a livre concorrência, atrair investimentos, e ampliar a competitividade do gás.
O MME estima que o custo do gás, nos elos que são regulados pela ANP (escoamento, processamento e transporte), tem potencial de redução de cerca de 8 US$/MBTU. Somente no transporte, as tarifas poderiam ser reduzidas em mais de 60%, já no início de 2026, com a realização, pela ANP, de uma revisão integral das tarifas das transportadoras.
Por outro lado, cabe aqui reconhecer que, nos últimos anos, o MME assumiu o seu papel de protagonista no debate sobre as necessárias transformações do setor, sendo bastante propositivo e vocal na defesa de uma agenda correta, em especial na redução de custos indevidos e no aumento da eficiência da cadeia logística da movimentação, processamento e transporte do gás.
É uma atuação corajosa, porém solitária no âmbito federal. São muitos os obstáculos a serem superados e seria fundamental uma atuação dos demais órgãos federais, mais alinhados aos esforços do MME.
Apesar desses esforços do MME, principalmente aqueles para reduzir a níveis justos as tarifas de transporte, processamento e escoamento, o que o Brasil ainda vê é um mercado altamente concentrado e com tarifas que tiram a competitividade do gás.
Logo, neste momento, discutir a classificação de gasodutos de transporte, como propõe a ANP, é no mínimo contraproducente. Só cria mais ruído, conflito e instabilidade institucional, logo em um tema que se manteve em harmonia nas últimas décadas.
Essa reavaliação de prioridades é fundamental. Do contrário, o Brasil poderá ver mais uma década perdida no setor de gás.