Opinião

Gás para Empregar e nossa falta de objetividade

“Infelizmente, o Brasil nunca perde uma oportunidade de perder oportunidades”

Por Bruno Armbrust

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A frase destacada no subtítulo desse artigo é creditada ao falecido economista, diplomata e político Roberto Campos e está relacionada, na visão dele, com a nossa incapacidade de promover ciclos robustos e sustentados de crescimento econômico e desenvolvimento social. De fato, ao longo dos anos, tivemos vários momentos em que os ventos sopraram favoráveis e parecia que iríamos finalmente deixar de ser “o país do futuro”, mas não tivemos a capacidade de nos estruturarmos para capturar as oportunidades.

No caso do mercado do gás natural, não foi diferente. Em 1998, foi aprovada a Lei 9.478 de 08/1997 que criou a Agência Nacional do Petróleo e Gás Natural – ANP (que mais tarde incorporou no nome a palavra Biocombustíveis) e o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE. A Lei 9.478/1997, além de definir as bases da Política Energética Nacional que tinha dentre seus principais Princípios e Objetivos:

i) proteger os interesses do consumidor quanto ao preço, qualidade e oferta de produtos;

ii) incrementar em bases econômicas a utilização do gás;

iii) promover a livre concorrência;

iv) atrair investimentos na produção de energia, e

v) ampliar a competitividade do país em relação ao mercado internacional.

No entanto, quase no mesmo período em que foram publicados os princípios e objetivos da política energética do país, o Parlamento Europeu aprovou a Diretiva 98/30/EC, que introduziu na União Europeia – UE uma série de normas comuns para todos os países membros. Dentre os Princípios e Objetivos da 98/30/EC estavam:

i) se buscar uma regulação mais aberta,

ii) salvaguarda dos interesses gerais,

iii) introduzir transparência e garantia da informação,

iv) a liberalização dos mercados,

v) atração de investimentos,

vi) limitar a intervenção direta do governo, dentre outras.

Embora os Princípios e Objetivos em ambos os casos fossem muito parecidos, até os dias de hoje, apesar de algumas tentativas e oportunidades que tivemos de implantar no Brasil um ambiente concorrencial e de menor concentração no mercado de gás no país, ainda não alcançamos o êxito esperado.

Já no caso na UE, em 2003, o resultado foi outro, principalmente pela introdução de medidas como a separação das atividades reguladas daquelas sujeitas à livre concorrência, a introdução de concorrência e redução da concentração de mercado por meio de programas de Gas Release e facilidade de entrada de novos comercializadores, cronograma de migração gradual dos consumidores ao mercado livre, livre acesso às infraestruturas gasistas e acesso não discriminatório às infraestruturas do sistema gasista, dentre outros.

O resultado na UE foi que, em muitos países, a abertura se deu de forma muito rápida. Nos casos da Espanha e Itália, 5 a 6 anos após a diretiva de 1998, cerca de 80% dos volumes eram comercializados no mercado livre. Mesmo com o avanço da liberalização do mercado de gás, cinco anos mais tarde, foi publicada uma nova Diretiva, a 2003/55/EC, com o objetivo de acelerar o processo de abertura, estabelecendo que, a partir de julho de 2004, todos os consumidores industriais, e, a partir de julho de 2007, todos os demais consumidores, deveriam eleger seu fornecedor de gás.

Uma das medidas que foi de extrema importância, dentre as muitas implementadas para reduzir a concentração de mercado e aumentar a concorrência, foi o programa de Gas Release, em cada país. Na Espanha, o governo facilitou a entrada de novos agentes com a decisão de liberar 25% do gás importado da Argélia. Após dois anos, a limitação ao agente dominante acabaria. O programa estimulou uma corrida dos novos agentes em busca de contratos de importação de longo prazo. O resultado foi um excesso de oferta.

Na Itália, não foi diferente e a Eni foi obrigada a aumentar em 10% a capacidade de transporte do gás da Argélia, em favor de outros comercializadores, o que resultou em uma maior concorrência. Já na Alemanha, a concorrência deu um grande passo à frente quando o mercado ficou liberado das restrições dos contratos existentes com o incumbente, o que deu aos consumidores liberdade imediata para adquirir de fontes alternativas.

No Brasil, em 2009, tivemos uma grande oportunidade durante a discussão da Lei 11.909 – a primeira Lei do Gás, mas infelizmente não tivemos a coragem para formular uma lei moderna e transformadora, mesmo com os exemplos do êxito da abertura na UE. A Lei 11.909/2009 não surtiu efeito e tivemos que esperar 12 anos pela edição de uma nova Lei do Gás, a Lei 14.134/2021.

Em 2022, o CNPE aprovou a Resolução nº 03/2022, que estabeleceu as diretrizes estratégicas para o desenho do novo mercado de gás natural, os aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência, tendo como uma das premissas iniciais a “Adoção das Boas Práticas Internacionais”.

Apesar de alguns avanços ocorridos após a Lei 14.134/2021, principalmente na Região Nordeste, em razão da maior concorrência que se estabeleceu ali, ainda estamos muito distantes das boas práticas internacionais e ainda temos um mercado muito concentrado e de pouca concorrência.

Em que estamos falhando?

Diante da dificuldade de se avançar com a abertura do mercado de gás e do aumento da concorrência, o CNPE criou, em 20/03/2023, por meio da Resolução nº 01/2023, o Grupo de Trabalho denominado “Gás para Empregar” com a finalidade de subsidiar o CNPE na proposição de medidas e diretrizes para promover o melhor aproveitamento do gás natural produzido no Brasil.

Ao longo de quase um ano e meio, foram realizadas várias reuniões públicas onde muitos agentes do mercado, associações de consumidores e consultores tiveram a oportunidade de contribuir na construção aberta e hoje, 26 de agosto, quando escrevo esse artigo, o trabalho do GT resultou na aprovação de um decreto com novas regras para o mercado de gás natural no país, dentre as quais:

i) impor maior controle e restrição da reinjeção do gás com o objetivo de aumentar a oferta;

ii) atuar sobre os custos atuais do acesso às infraestruturas de transporte decorrentes dos contratos legados e;

iii) exercer um maior controle sob o planejamento das entradas de gás no país via terminais de GNL.

O decreto, para ter a eficácia esperada, deveria também focar em ações objetivas para eliminar barreiras à concorrência e elevada concentração de mercado, em especial nas regiões sul, sudeste e centro-oeste, mas não foi considerada nenhuma proposta de implementação de um programa de Gas Release com metas concretas, que poderia ter positivos efeitos no curto prazo.

Na minuta do decreto que circulou nos últimos dias, não fica claro como será tratado, no curto prazo, temas espinhosos como, por exemplo, os contratos legados que vencem em 2025. Poderia ser considerada pela ANP a realização de uma revisão tarifária integral de duas grandes transportadoras até o final de 2024, antecipando o efeito do fim dos contratos legados que terminam em dez/2025.

Isto possibilitaria a redução das tarifas no Sudeste, por exemplo, em cerca de -29% a partir de jan/2025, sem afetar a remuneração da transportadora prevista para o quinquênio 2025-2029.

A minuta do decreto é extensa, e embora apresente alguns pontos positivos, não fica claro quais serão as suas ações objetivas e quanto aos reais objetivos no curto, médio e longo prazos. Para tanto o país precisa de um “Gas Target Model”, onde poderia ser definido, por exemplo, um objetivo de limitação do grau de concentração a médio prazo.

Como sugestão, seria importante limitar contratos de longo prazo com o incumbente, assim como também propor um cronograma de migração gradual para o mercado liberalizado. Outro aspecto importante seria a possibilidade de considerar, num período de transição, o incumbente como Comercializador de Último Recurso.

O decreto deixa para a ANP uma agenda regulatória mais robusta sem explicitar aspectos importantes que poderiam estar num Gas Target Model nos moldes da ACER – regulador europeu.

O decreto contém ainda algumas questões que poderiam conferir algum tipo de conflito regulatório. Cabe destacar que muitas das atribuições contidas no decreto já são de responsabilidade da ANP.

Outra questão é que a minuta traz pontos que poderão ser interpretados como interferência clara na competência dos estados, o que poderá gerar conflitos federativos.

O aumento da oferta é fundamental para o desenvolvimento do mercado, mas ainda mais fundamental é a diversificação de ofertantes. Se o aumento da produção nacional vier concentrado no agente dominante pouco efeito terá. O mercado de gás, há muito tempo, se encontra estagnado com uma pendente negativa e somente o aumento da oferta associada a uma maior concorrência na oferta e redução da concentração de mercado poderá reverter.

Está na mídia declarações de que as medidas contidas no novo decreto poderão aumentar a oferta do gás nacional ao mercado e reduzir o preço do gás. Em 2021, declarações semelhantes foram ouvidas após a aprovação da Lei 14.134 e o que se viu nos anos seguintes foi o endurecimento da política de preços do gás da Petrobras, ainda o price maker do mercado.

Enfim, havia uma grande expectativa das conclusões e propostas do Grupo de Trabalho em razão da forma aberta e plural como foi conduzido, mas fica uma certa frustação de estarmos adotando soluções parciais, uma grande preocupação de estarmos mais uma vez na linha do “ótimo é inimigo do bom” e a sensação de estarmos perdendo uma nova oportunidade de darmos um passo definitivo para a abertura correta e efetiva do mercado de gás no país.

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