Opinião
Atributos do biogás para o setor elétrico
A economia circular busca desconstruir o conceito de “lixo”. Não mais cabe o simples descarte de resíduos, eles são recursos para novos ciclos produtivos
Versátil energético, o biogás é uma fonte que pode de várias formas integrar a matriz brasileira, trazendo diversificação, segurança e, sobretudo, nítidos benefícios para o meio ambiente e a saúde pública. Sua produção se origina, dentre outros, dos resíduos agropastoris, industriais, lixo urbano e do esgotamento sanitário. Obtido a partir da biodigestão controlada de matéria orgânica, a produção do biogás reduz os impactos causados pela inadequada disposição dos resíduos, preservando os corpos d’água, prevenindo a contaminação dos solos e evitando a emissão desordenada de metano na atmosfera. É composto principalmente por metano, dióxido de carbono, nitrogênio, hidrogênio, oxigênio e alguns outros gases em menores quantidades.
Uma das principais rotas de aproveitamento técnico e econômico do biogás é a produção de energia elétrica através de sistemas moto-geradores, particularmente de combustão interna. É senso comum que, além das inegáveis vantagens socioambientais do aproveitamento do biogás, a eletricidade produzida a partir dessa fonte colabora para o atendimento energético.
Em virtude de sua vigorosa atividade agropastoril, o Brasil apresenta elevado potencial para a produção de biogás. Segundo a Associação Brasileira do Biogás – ABiogás, o potencial teórico[1] brasileiro de produção de biogás é de 77.000 MM Nm3/ano[2]. Visando a uma comparação, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado - ABEGÁS, o consumo total de gás natural no Brasil em 2020 foi da ordem de 22.000 MM Nm3/ano. A figura 1 ilustra a distribuição geográfica do potencial teórico brasileiro.
Figura 1 – Distribuição do potencial teórico da produção brasileira de biogás
Fonte: Elaboração própria
Considerando uma taxa média de 1,5% aa foi possível projetar o crescimento do potencial teórico no longo prazo, conforme ilustrado na Figura 2. Destaque-se que recente estudo publicado pelo CIBiogás revela que, apesar do elevado potencial no país, somente cerca de 2.000 MM Nm3/ano de biogás são atualmente produzidos.
Figura 2 – Projeção do potencial teórico da produção brasileira de biogás
Fonte: Elaboração própria
O já referido estudo indica que cerca de 73% do biogás atualmente produzido é destinado à rota de eletricidade. A relação típica de conversão de biogás em eletricidade mediante as tecnologias em uso é de 2,31 kWh / Nm3 de biogás. Assim, foi possível projetar três cenários para a penetração do biogás na matriz elétrica, com base nas expectativas para os estímulos a serem oferecidos à fonte. Observa-se num cenário moderado a possibilidade de efetiva produção de 5,0 GWmed já em 2030. Ela corresponde a uma substancial contribuição para o atendimento da carga. A Figura 3 ilustra as projeções para as trajetórias de crescimento da energia elétrica oriunda do biogás.
Figura 3 – Trajetórias de penetração da energia elétrica oriunda do biogás
Fonte: Elaboração própria
As tecnologias disponíveis para a biodigestão são muito diversificadas, desde arranjos muito simples e eventualmente improvisados, até instalações com sofisticados sistemas de controle e elevada produtividade. De modo geral podem-se agrupar esses reatores nos tipos a seguir:
- Chinês – Simples, artesanal, teto rígido, sem controles
- Indiano – Simples, dotado de êmbolo
- Canadense – Lagoa coberta. Pode ou não incorporar agitação ou mecanismos de controle
- CSTR – reator de concreto ou aço, com agitação contínua
- UASB – Apropriado para tratamento de lama de esgoto
A produção de energia elétrica a partir do biogás ocorre prioritariamente através de grupos motogeradores de combustão interna. A utilização de miniturbinas para esse fim é ainda incipiente e não representa quantidade significativa de instalações.
Uma importante característica da operação das usinas a biogás é a possibilidade de armazenamento do combustível primário. No caso dos reatores esse armazenamento é obtido através de pulmões ou, no caso das lagoas cobertas, pela própria lona de cobertura. Nos aterros o gás é preexistente e pode ser disponibilizado através da operação das válvulas.
Em sua quase totalidade, os aproveitamentos têm capacidade inferiores a 30 MW e se conectam nas redes de distribuição. Esses empreendimentos podem assumir qualquer das modalidades previstas para geração de energia, ou seja, a produção independente ou a autoprodução de energia. Podem adotar quaisquer dos arranjos para a destinação da energia previstos na Regulamentação, sendo os mais comuns:
- Venda de energia no ACR[3] mediante leilões regulados
- Venda de energia às distribuidoras nos termos do Decreto 5.163/2004[4]
- Venda de energia no ACL[5]
- Autoconsumo
- Micro e minigeração distribuída[6].
Enquanto geração distribuída, a produção de energia elétrica decorrente do biogás apresenta todas as vantagens dessa modalidade próxima à carga, quais sejam: a redução das perdas, a postergação dos investimentos na distribuição e o alívio de congestionamento dos sistemas de transmissão. Diferentemente de outras fontes, entretanto, o regime de produção da fonte biogás é estável e não apresenta intermitência, o que reduz o esforço exigido para o seguimento instantâneo da carga. Também o biogás não está sujeito à estocacidade climática. Dessa forma, sua disponibilidade é previsível.
Um resumo dos atributos do biogás enquanto fonte primária para a produção de eletricidade pode ser observado na Figura 4.
Figura 4 – Resumo dos atributos do biogás
Fonte: Elaboração própria
O conjunto de atributos descrito confere ao biogás uma elevada capacidade de modulação[7]. Essa importante característica permite a realização de uma das principais tarefas do operador de sistemas elétricos, que consiste no planejamento da operação de modo a atender a variações da carga.
Particular importância da modulação é o atendimento da ponta do sistema. A figura 5 ilustra uma simulação da contribuição para a modulação da ponta de carga proporcionada por um montante equivalente a 5 GWmed, que pode ser disponibilizado no médio prazo pelo biogás. Os dados de carga correspondem a um dia útil e foram capturados no site do ONS.
Figura 5 – Simulação da contribuição do biogás na carga de energia do SIN
Fonte: Elaboração própria
Outro atributo do biogás, também decorrente da sua elevada capacidade de modulação, é a complementaridade que pode trazer aos portifólios comerciais, particularmente aqueles compostos pelas fontes eólica e solar. A Figura 6 ilustra uma simulação do efeito da agregação do biogás a uma carteira de uma pequena comercializadora, na ordem de 70 MWmed, composta incialmente pelas fontes solar e eólica. Observa-se a contribuição proporcionada por cerca de 20 MWmed de energia do biogás ao perfil do portifólio, reduzindo substancialmente os riscos de exposição aos preços de curto prazo.
Figura 6 – Participação do biogás num portifólio comercial
Fonte: Elaboração própria
A despeito das limitações decorrentes do porte das usinas a biogás e da pequena inércia de suas máquinas, elas são capazes, quando tomadas em conjunto, de prestar alguns desses serviços. Além disso, podem atender a outros interesses da distribuição, a exemplo do funcionamento em ilha, contribuindo para a continuidade em alguns sistemas, o controle de tensão e o suporte de reativo. Esses arranjos configuram micro redes, capazes de funcionar em paralelo ou isoladamente do restante do sistema de distribuição.
A rápida penetração dos Recursos Energéticos Distribuídos – RED[8] trouxe uma nova visão sobre o papel de pequenas usinas no sistema. Inicialmente eram vistas somente como fontes não planejáveis, dispersas, cuja única contribuição seria a produção inflexível de energia, aleatória e descontrolada. Desde que agregadas de modo inteligente, os RED passaram a trazer possibilidades de efetiva prestação de diversos outros serviços. Podem integrar um mercado cujo desenho proporcione os sinais de preço capazes de induzir os comportamentos necessários aos resultados desejados para o conjunto.
Usina Virtual, conceito originado nos programas de Respostas da Demanda, exclusivos da carga, resultou fortemente ampliado com as perspectivas da geração e do armazenamento distribuídos. Assim consolidou-se a ideia de combinar várias unidades de pequeno tamanho para compor uma única unidade geradora que pode atuar emulando os mesmos resultados de uma usina de grande porte, capaz de ser visível e gerenciável. Ela é a representação flexível de um portifólio de RED, que pode oferecer serviços para o Operador do Sistema e contratar no Mercado de Energia. O coração da Usina Virtual é um sistema de gerenciamento que coordena os fluxos de energia provenientes dos geradores, cargas e armazenamentos controláveis. A comunicação é bidirecional, para que a Usina Virtual possa receber informações sobre o status atual de cada unidade e enviar os sinais para controle em tempo real.
As VPP ou Virtual Power Plants, como a literatura internacional denomina as Usinas Virtuais, avançam rapidamente em alguns mercados, como na Itália e Alemanha, entre outros. Sua adoção acompanha a penetração das redes inteligentes, ou Smart Grids, inexorável em todo o mundo. No Brasil a figura do Agregador já estava prevista na regulamentação da Resposta da Demanda desde 2017 e avança para incorporar os demais RED no seu escopo.
Através do conceito das Usinas Virtuais, que se apresentam na dimensão comercial e na dimensão operativa, empreendimentos individuais podem obter acesso e visibilidade em todos os mercados de energia. É possível assim monetizar de forma mais efetiva não somente a energia produzida, como também todos os serviços que venham a prestar, de modo a viabilizar as usinas individuais, com vistas nos benefícios que inegavelmente podem oferecer.
O aproveitamento do virtuoso conceito das Usinas Virtuais depende da estruturação da figura dos Agregadores, que centralizará as relações operativas e comerciais entre todos os envolvidos. A Figura 7 ilustra o esquema relacional das Usinas Virtuais centradas nos Agregadores.
Figura 7 – Agente Agregador e as Usinas Virtuais
Fonte: Adaptação AES Brasil
Tendo em conta a natureza do aproveitamento do biogás, muito alinhada com os princípios da economia circular, verifica-se que, diferentemente de outras fontes cujo custo do energético primário é positivo, no caso dos combustíveis fósseis, ou nulo, como nas fontes eólica e solar, para o biogás o custo é negativo: a transformação e destino da biomassa residual correspondem, de fato, a uma desoneração das cadeias produtivas à montante. Essa característica pode ser considerada no caso do aproveitamento do biogás para os efeitos da Lei 14.120/21, que trata da consideração dos atributos ambientais no setor elétrico.
Não é demasiado, entretanto, ressaltar que o aproveitamento pelo setor elétrico da elevada contribuição proporcionada pelos atributos do biogás dependerá de sua valorização e adequada precificação.
[1] Potencial teórico é uma abstração que corresponde à conversão de toda a biomassa residual disponível em biogás
[2] MM Nm3/ano – milhões de Normais metros cúbicos por ano, referenciados às Condições Normais de Temperatura e Pressão - CNTP
[3] ACR – Ambiente de Contratação Regulada
[4] O Art. Do Decreto 5.163 faculta a contratação de até 10% da carga das distribuidoras com empreendimentos de geração distribuída conectados em suas redes mediante chamadas públicas
[5] ACL – Ambiente de Contratação Livre
[6] A micro e minigeração distribuída são modalidades instituídas pelas Resoluções Normativas da ANEEL nº 482/2012 e 687/2015
[7] Modulação é a propriedade de distribuir a produção da energia ao longo das horas do dia.
[8] Recursos Energéticos Distribuídos – RED são alternativas para o atendimento energético próximo à carga, representadas pela geração distribuída, o armazenamento distribuído, a resposta da demanda e a eficiência energética
Bibliografia
ABIOGÁS. O Potencial Brasileiro do Biogás
CHAVES, F. Serviços ancilares através da geração distribuída: reserva de potência ativa e suporte de reativos. Tese
CIBIOGÁS. Panorama do Biogás no Brasil. NT 001/2021
EPE. Demanda de Energia 2050. NT 013/15
EPE. Resposta da Demanda – Conceitos, Aspectos Regulatórios e Planejamento Energético.
MARIANI, L. Biogás: diagnóstico e propostas de ações para incentivar seu uso no Brasil. Tese
ONS. Relatório do Workshop de Serviços Ancilares
SABOORI, H. at al. Virtual Power Plant (VPP), Definition, Concept, Components and Types
SALMANI, M. at al. Virtual Power Plant: New Solution for Managing Distributed Generations in Decentralized Power Systems