Opinião
Dowstream: Alavanca para o Crescimento do Mercado de Gás Natural
Setor de distribuição tem papel fundamental para impulsionar uso da fonte na matriz energética brasileira - e vem fazendo sua parte
O Brasil vive um cenário inédito em seu mercado de gás natural. O complexo cenário geopolítico internacional, com desdobramentos econômicos que poderão perdurar sobre o setor energético, representa um desafio, mas uma janela de oportunidade para aproveitar as reservas de gás natural disponíveis em território nacional.
O potencial é significativo. De acordo com o Boletim Anual de Recursos e Reservas 2020, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), no ano de 2020 foram declarados 337.238 milhões de metros cúbicos (Mm³) de reservas provadas (1P), 408.343 MMm³ de reservas provadas + prováveis (2P) e 450.247 MMm³ de reservas provadas + prováveis + possíveis (3P). Somente as reservas provadas do pré-sal equivalem a 198.835 MMm3.
Entretanto, mesmo com toda essa quantidade de gás natural, o Brasil segue sem políticas públicas adequadas que incentivem a exploração desse energético.
Uma análise mais cuidadosa dos números do Boletim de Produção e Gás Natural da própria ANP apontam que o aproveitamento real do gás vem caindo, apesar do aumento da capacidade de produção. Os níveis de reinjeção são o indicador do desperdício: em 2017, foi de 27,6 MMm³/dia (média do acumulado), diante de um total produzido de 109,9 MMm³/dia, perfazendo 25% de reinjeção; em 2018, esse percentual passou a 31%; em 2019, a 35%; em 2020, a 42,9%.
A redução de demanda ocorrida no primeiro ano de pandemia, especialmente no segundo trimestre de 2020, não explica tal escalada de desperdício, uma vez que o nível de reinjeção em 2021 chegou a injustificáveis 45,5%, mesmo com a recuperação atestada pelo crescimento de 4,6% do Produto Interno Bruto. Basta destacar que, em 2021, a demanda de gás do setor industrial cresceu 15%. O consumo industrial no último trimestre de 2021, de 29,4 Mm³/dia, chegou a ser superior aos do acumulado nos tempos pré-pandemia (28 MMm³/dia em 2019).
Esse desperdício de gás fica ainda mais deplorável quando levamos em conta que, em 2021, o Brasil atravessou sua mais grave crise hídrica em 91 anos de registro histórico, o que aumentou o despacho termelétrico e elevou os números de importação de gás natural liquefeito (GNL) – somente a Petrobras importou um recorde de 23 MMm³/dia, volume cerca de 200% maior que o registrado no ano anterior.
Nesse quadro, um dos gargalos notórios é a falta de infraestrutura essencial – de rotas de escoamento do gás do pré-sal, de unidades de processamento de gás natural (UPGNs) e de gasodutos de transporte. Essa deficiência poderá ser reduzida com a entrada em operação da chamada Rota 3, projeto de gasoduto de escoamento de aproximadamente 355 quilômetros (km) de extensão total, que escoará gás natural do pré-Sal da Bacia de Santos até o Polo GasLub (antigo Comperj), em Itaboraí. As obras tinham previsão para serem concluídas em julho de 2020 – a estimativa é que a operação comece ainda este ano.
Mas ainda é pouco.
Mesmo depois do Rota 3, o Brasil ainda seguirá com gargalos.
Cabe lembrar que a malha de gasodutos de transporte praticamente não teve crescimento nos últimos dez anos, estacionando na casa dos 9.500 km. A edição mais recente do Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte (PIG), estudo realizados em 2019 pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), fez um levantamento indicativo de projetos que podem vir a ser implementados nos próximos anos no Brasil, com base em estudos de oferta e demanda, e que poderiam totalizar 2.000 km adicionais de gasodutos de transporte. Mas apesar da aprovação e sanção da Nova Lei do Gás, que facilitou a implementação de novos projetos, ao mudar o regime de concessão para autorização, não há nenhum sinal de novos projetos por parte das transportadoras de gás, mesmo havendo sido esse o elo da cadeia onde os desinvestimentos da Petrobras previstos no TCC (Termo de Compromisso de Cessação), firmado em julho de 2019, ficaram mais próximos do cronograma estabelecido entre a companhia e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Ou seja, não há como pensar em novo mercado de gás se não houver passos concretos desses dois elos fundamentais da cadeia: upstream e midstream.
Nunca é demais reforçar que somente com mais oferta de gás natural, especialmente com projetos que potencializem o aproveitamento da produção de gás nacional, é que será possível ampliar o mercado – para isso é preciso que se acelere a desconcentração de mercado, por intermédio do cumprimento do TCC, e que surjam mais agentes privados na oferta de gás, propiciando mais concorrência.
Pelo lado do elo de downstream, as distribuidoras vêm fazendo a sua parte. Em 11 anos, a rede de distribuição de gás natural teve um crescimento de 108%, saindo de 19.313 km em 2011 para 40.282,3 km em 2021, de acordo com dados coletados pela Abegás com as concessionárias.
É fundamental destacar que o setor de distribuição parte de dois princípios:
(1) é preciso levar gás para todos os segmentos, sem distinção;
(2) os contínuos investimentos em expansão de rede são a base para um crescimento sustentável, não só para o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, mas também pelo papel social do setor, levando a segurança, a eficiência energética e a competitividade do gás natural para mais indústrias, estabelecimentos do segmento comercial, automotivo e residencial.
Naturalmente, o setor industrial é fundamental como âncora para novos projetos – geralmente são eles que viabilizam os investimentos em expansão de rede. A partir da construção dos dutos de distribuição, as concessionárias obviamente têm a obrigação de saturar essa rede.
Também há um imenso potencial a ser explorado no segmento comercial, que hoje chega a mais de 45.700 estabelecimentos. São shoppings, hotéis, hospitais, academias, lavanderias, bem como restaurantes, bares e padarias, que podem usar gás para várias utilidades, inclusive para geração da própria energia e climatização.
Já o crescimento da construção civil, que registrou um avanço de 9,7% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2021, também vem contribuindo para a expansão do segmento residencial. Nos 12 meses de 2021, as distribuidoras adicionaram mais de 203 mil clientes em casas, condomínios verticais ou horizontais, elevando em 5,3% sua base de clientes em domicílios.
No final de 2021, o total de unidades consumidoras de gás natural, considerando todos os segmentos, ultrapassou a marca de 4 milhões. Considerando que, de acordo com dados do PNAD 2019, o Brasil conta com 72 milhões de residências, das quais aproximadamente 10 milhões são de apartamentos, podemos visualizar um espaço significativo para o crescimento no segmento residencial.
De Norte a Sul, as distribuidoras têm trabalhado para universalizar o acesso ao gás natural, em sintonia com os planos de investimentos aprovados pelas agências reguladoras estaduais. O espaço deste texto em Cenários Gás seria insuficiente para mencionar todos os projetos. Mas, para ficar em alguns exemplos, posso citar alguns deles.
Na região Norte, a Companhia de Gás do Amazonas (Cigás) estima investimento da ordem de R$ 37,8 milhões em 2021. Até 2025, a previsão é atingir 21 mil unidades contratadas. Atualmente, este número é de 4,3 mil.
No Nordeste, a Companhia Pernambucana de Gás (Copergás) anunciou em 2021 aportes de R$ 370,4 milhões para o período 2021-2025, destinados a projetos como a finalização do gasoduto Camaragibe-Carpina, a expansão em Caruaru e o projeto pioneiro no Norte-Nordeste em Petrolina (no Sertão) e Garanhuns (Agreste). Já a Companhia de Gás da Bahia (Bahiagás) vem trabalhando em um projeto de fôlego: o Gás Sudoeste. Com 306 km de extensão, o gasoduto de distribuição interligará 12 municípios, de Itagibá a Brumado, passando por Jequié, Maracás e outras oito cidades da região. O aporte foi estimado em cerca de R$ 392 milhões, contabilizando as três etapas da obra. No Ceará, os investimentos planejados pela Companhia de Gás do Ceará (Cegás) para os próximos cinco anos somam cerca de R$ 256 milhões – 96% deles direcionados para a infraestrutura da rede.
No Centro-Oeste, a Companhia de Gás de Mato Grosso do Sul (MSGás) ampliou sua rede em mais de 36 km ao longo de 2021, com investimentos que superaram R$ 22 milhões.
No Sul, em Santa Catarina, a Companhia de Gás de Santa Catarina (SCGás) planeja dedicar R$ 78,8 milhões em obras de expansão, que inclui o avanço de uma nova rede local e isolada no Planalto Norte catarinense, entre outros. A Companhia Paranaense de Gás (Compagas) encerrou 2021 com uma alta de 3% na base de clientes. No Rio Grande do Sul, um dos destaques é a construção do gasoduto entre Três Coroas e Gramado, que prevê a construção de 31 km de rede. Dividido em seis fases, o projeto da Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás) tem um investimento estimado em mais de R$ 23 milhões – e os primeiros contratos com clientes na cidade de Gramado já foram assinados.
No Sudeste, no Espírito Santo, a Companhia de Distribuição de Gás do Espírito Santo (ES Gás) vai iniciar as obras de interligação da rede de distribuição de gás ao gasoduto de transporte Cacimbas-Vitória, o que permitirá aumentar a segurança da operação e ampliar a oferta de gás natural em Linhares. A obra, de um ano de duração, terá investimentos de R$ 27,7 milhões. Em São Paulo, a GasBrasiliano vem investindo R$ 30 milhões para construir a rede de distribuição que levará o biometano produzido pela Cocal até Presidente Prudente. A prorrogação da concessão da Comgás prevê a adição de mais de 2,3 milhões de clientes até 2049.
O setor de distribuição, desse modo, é um importante vetor para o crescimento da demanda de gás natural, sinalizando a necessidade de reduzir a reinjeção de gás nacional.
E é preciso que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) tenha um papel mais assertivo como órgão planejador, claramente apontando uma direção para o crescimento do setor.
Importante destacar que a expansão do setor de gás natural é indispensável para que a segurança energética brasileira. A operação do Sistema Interligado Nacional (SIN) está cada vez mais dependente do clima, em grande parte pela perda da capacidade de regularização dos reservatórios das hidroelétricas, efeito de sucessivas crises hídricas que vêm acontecendo no País desde 2012. Outro agravante, nesse período, foi a prioridade à construção de usinas hidrelétricas a fio d’água (sem reservatórios de água) e a escalada da geração de fontes renováveis intermitentes – uma vez que as usinas eólicas e solar fotovoltaicas dependem, respectivamente, da existência de vento e de sol. Esse modelo, portanto, resulta em uma matriz elétrica muito refém do clima – citando um diagnóstico do diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires, especialista com mais de 30 anos de atuação no setor de energia.
A instabilidade do regime de chuvas, entre 2020 e 2021, já mencionada nesse texto, mostra a relevância do gás natural como fonte firme. É sintomático que termogeração a gás das 38 usinas diretamente abastecidas pelas distribuidoras tenha registrado um alta de 51,7% em 2021, ante o mesmo período de 2020.
Nesse sentido, a aplicação da Lei 14.182/2021, que estabelece a inserção de 8 GW em termelétricas a gás no Sistema Interligado Nacional (SIN) entre os anos de 2026 e 2030, será uma oportunidade para ampliar essa segurança de suprimento, ancorando a construção de infraestrutura essencial em unidades da federação ainda não (plenamente) abastecidas com essa fonte.
Sob o ponto de vista ambiental, esse crescimento do gás natural também pode ser bastante saudável. Vale lembrar que a União Europeia manifestou-se favorável à inclusão do gás natural como “fonte verde” no sistema de taxonomia da Comissão Europeia, o que na prática deve facilitar o investimento nesses setores.
Seguindo o mesmo caminho, o Brasil precisa orientar seu planejamento energético para a substituição de fontes fósseis muito menos limpas e menos competitivas por usinas a gás com até 70% de inflexibilidade e mais eficientes, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Uma agenda inescapável, nessa mesma direção, é o uso do gás natural em transporte de carga e de passageiros, a exemplo do que acontece na Espanha, Estados Unidos e Colômbia, entre outros países. A criação de corredores logísticos, com postos de combustíveis preparados para o abastecimento de caminhões, pode dar uma contribuição inestimável para a redução de emissões de GEE e, não menos importante, para praticamente zerar nas grandes cidades a emissão de material particulado (MP2,5), um dos principais vilões da poluição atmosférica à saúde.
A adoção do gás natural na mobilidade urbana é uma das muitas oportunidades para o Brasil fazer a coisa certa, reduzindo sua importação de diesel e aumentando sua autonomia energética. E temos um arsenal de possibilidades e de bons exemplos – o mais importante é arregaçar as mangas, com cada agente fazendo seu papel, dentro do seu campo de competência, para desenvolver a infraestrutura, fomentando um mercado aberto e competitivo, e que, principalmente, tenha gás para todos.