Opinião

A abertura do mercado livre e respeito aos contratos

Não se pode perder de vista que o objetivo comum da modernização do setor elétrico deve ser a ampliação do acesso e segurança dos serviços de energia elétrica a preços justos

Por Mariana Saragoça

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Já há alguns anos, o setor elétrico discute a chamada modernização do seu marco legal de modo a adaptar o arcabouço vigente às novas demandas e dinâmicas setoriais e, em especial, no que se refere à comercialização de energia elétrica.

Nesse sentido, há diversas iniciativas em tramitação no Congresso Nacional como Projeto de Lei nº 1.917/2015 e, com mais proeminência, o Projeto de Lei nº 414/2021 – versão atual do PLS 232/2016 –, este último, inclusive, definido como uma das prioridades do Executivo Federal para o ano de 2022.

Dentre os variados aspectos discutidos nos referidos projetos, tais como a racionalização de subsídios e a esperada separação entre lastro e energia, um dos temas de maior destaque no setor trata da abertura do mercado livre que permitirá que cada vez mais consumidores consigam adquirir energia diretamente de geradores ou comercializadores de energia.

Fato é que, mesmo com todas estas discussões, no último dia 28/09/22, o Ministério de Minas e Energia publicou a Portaria Normativa nº 50/GM/MME que definiu que a partir de 1º de janeiro de 2024 os consumidores classificados como Grupo A poderão optar pela compra de energia elétrica no Ambiente de Contratação Livre – ACL, sendo que os consumidores com carga individual inferior a 500kW, deverão ser representados por agente varejista perante a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE.

Ato contínuo, já no dia 30/09/22, o MME fez publicar a Portaria nº 690/GM/MME que divulga, para Consulta Pública, minuta de Portaria que trata da redução do limite de carga para contratação de energia elétrica no mercado livre por parte dos consumidores da baixa tensão no mercado livre prevendo, dentre outros. Que: (i) consumidores atendidos em baixa tensão poderão migrar para o mercado livre a partir de 1º de janeiro de 2026 com exceção daqueles integrantes da Classe Residencial e da Classe Rural que o poderão fazer a partir de 1º de janeiro de 2028, também sendo representados por comercializadores varejistas; (ii) as distribuidoras de energia, na figura de Supridores de Última Instância - SUI, serão responsáveis pelo atendimento aos consumidores da sua área de concessão no caso de encerramento da representação por agente varejista.

Neste ponto, não se pretende questionar a competência ou a legalidade das referidas medidas – precedidas de consulta pública – que tem previsão legal no Art. 15, § 3º, da Lei nº 9.074/1995 e já foram adotadas pelo MME em outras oportunidades como, por exemplo, na publicação da Portaria MME nº 465/2019.

De toda forma, não se pode deixar de avaliar o juízo de conveniência e oportunidade da administração para tal, tendo em vista, especialmente, seus impactos na atual dinâmica de comercialização de energia elétrica.

Em primeiro lugar, entende-se não haver dúvidas de que o futuro do setor elétrico estará calcado na liberdade dos agentes/consumidores para optar pelo fornecimento de energia que melhor lhe convier, seja em contratação direta com geradores/comercializadores, seja pela escolha da fonte desejada, ou ainda nas formas de produção da própria energia com sistemas de autoprodução ou mini e microgeração distribuída.

Adicionalmente, o referido modelo pode contribuir para o desenvolvimento do setor com as necessárias discussões acerca da atribuição de riscos e da racionalização de subsídios.

Ainda assim, não podemos esquecer que o atual marco legal foi concebido no período imediatamente após o racionamento de energia no início deste século, sendo calcado em contratos de longo prazo que contribuíram de forma relevante para a expansão e segurança do sistema elétrico nacional.

E é exatamente em benefício da segurança jurídica que as ações para a abertura do mercado livre devem também respeitar os chamados contratos legados.

Isso porque, no atual modelo, as concessionárias de distribuição de energia elétrica são responsáveis pela aquisição de energia para suprir seu mercado, e o fazem, principalmente, por meio da celebração de contratos regulados de médio e longo prazo com geradores participantes dos Leilões Regulados – contratos estes que, em grande parte, servem como lastro para a obtenção de recursos/financiamento para o setor.

Fato é que os níveis de contratação das distribuidoras de energia já vêm sendo pressionados pelas crises econômicas, pelos efeitos da pandemia da Covid-19 e, também, pela ampliação da migração de consumidores para o ACL e pela queda do mercado em razão do crescimento exponencial das instalações de sistemas de mini e microgeração distribuída.

Também é certo que já estão sendo adotadas medidas para mitigar esses efeitos como o reconhecimento da exposição contratual involuntária das concessionárias de distribuição decorrente da sobrecontratação oriunda da opção de seus consumidores pelo regime de microgeração e minigeração distribuídas, como disposto na Lei nº 14.300/2022 e cuja metodologia se discute na Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL.

Todavia, essa prática – há muito comum no setor elétrico – de reconhecer exposições contratuais como involuntárias acaba por, tão somente, transferir os custos que, geralmente, acabam sendo arcados pelos pequenos consumidores do mercado cativo que são, exatamente, os que não usufruem das novas tecnologias do setor elétrico.

É em razão disso que a abertura do mercado livre, embora se entenda amplamente benéfica e desejada pelo setor, deve ser feita de forma planejada, com a devida transição e respeito aos contratos legados e com o tratamento de seus efeitos colaterais.

É nesse ponto que também se pode avaliar uma maior liberdade para gestão dos contratos pelas próprias distribuidoras, não só com os mecanismos já previstos como o Mecanismo de Compensação das Sobras e Déficits – MCSDs, e, mais recentemente, o Mecanismo de Venda de Excedentes – MVE, mas com novas opções como a possibilidade de cessão de contratos e maior liberdade para os acordos bilaterais.

De toda forma, vale destacar, ainda, que os efeitos da Portaria que permitiu a migração dos consumidores do Grupo A para o ACL só serão observados a partir de 1º de janeiro de 2024 de modo que ainda há tempo para a análise e implantação de medidas que contribuam com a mitigação de eventuais riscos.

Espera-se que o tema continue sendo uma das principais pautas das discussões do setor elétrico nos próximos meses, quando será de extrema relevância a participação das instituições, agentes e sociedade na difícil missão de assegurar que o novo marco regulatório seja editado sem os chamados “jabutis” que tanto oneram o setor.

Não se pode perder de vista que o objetivo comum da modernização do setor elétrico deve ser a ampliação do acesso e segurança dos serviços de energia elétrica a preços justos.

Mariana Saragoça é advogada e sócia do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação; Frederico Accon Soares é advogado sênior e sócio do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação com ênfase no Setor Elétrico.

Outros Artigos