Opinião
O “Dia do Perdão” e os desafios para os projetos de geração
É imperioso que seja definido o tratamento a ser conferido aos empreendimentos outorgados que não obtiverem acesso ao SIN ou mesmo que deixarem de implantar seus empreendimentos nos cronogramas definidos
Ao longo dos últimos anos, o setor de geração de energia elétrica teve sua dinâmica significativamente alterada, muito em razão da redução dos custos para implantação de empreendimentos de fontes renováveis, tais como solar e eólica, e, em especial, em razão da não concessão do desconto nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão ou distribuição para novos entrantes – subsídio que permitiu o vertiginoso desenvolvimento destas fontes nas últimas duas décadas.
A publicação da Lei nº 14.120/2021, que estabeleceu o prazo de 12 meses para solicitações de outorga com o referido benefício, e do Decreto nº 10.893/2021, que dispensou a apresentação de Informação de acesso para o requerimento de outorga, promoveram uma verdadeira corrida pelo ouro para a obtenção de outorgas em patamares jamais observados no setor elétrico.
Ainda em março de 2022, esgotado o prazo para a solicitação de outorgas com o desconto nas tarifas de uso, avaliamos O fim da corrida pela outorga e o início da corrida pela conexão, destacando os inúmeros desafios que se avizinhavam, tal como se haveria demanda para estes projetos e como se daria a obtenção de acesso ao Sistema Interligado Nacional (SIN), considerando o claro cenário de restrição da capacidade de escoamento.
Mesmo que este cenário estivesse sendo desenhado desde 2021, eventuais alternativas e soluções ainda dependeriam definições regulatórias, como a promovida pela Resolução Normativa Aneel nº 1.038/2022, que estabeleceu procedimentos e diretrizes para o processo de solicitação de outorga de geração sem exigência de documento de acesso.
Dada a insuficiência da referida norma para lidar com a complexidade dos desafios enfrentados, também no início de 2023, destacamos Os desafios para o escoamento da geração de energia com a necessidade de ampliação da infraestrutura de transmissão de energia elétrica e a possível alternativa do Procedimento Competitivo por Margem (PCM), discutido no âmbito da Consulta Pública nº 148/2022 e que, por ainda não ter sido concluída pela Aneel, ainda produz A corrida contra o tempo e as lacunas regulatórias para garantir o acesso ao sistema de transmissão, como detalhado em artigo publicado em maio deste ano.
Neste último mês de julho de 2023, a Aneel deu mais um passo na tentativa de equacionar o problema regulatório acima exposto, com a edição da Resolução Normativa nº 1.065/2023 que estabeleceu requisitos e procedimentos atinentes ao mecanismo excepcional para tratamento de outorgas de geração e dos Contratos de Uso do Sistema de Transmissão (CUST) celebrados por centrais geradoras.
Ainda que seja possível questionar se os referidos mecanismos excepcionais acabariam por beneficiar empreendedores que inadimpliram suas obrigações regulatórias quanto ao cronograma de implantação de seus projetos e/ou obrigações pecuniárias no âmbito do CUST, fato é que a nova norma traz alternativas que podem contribuir para que uma solução estrutural para o acesso ao SIN seja alcançada.
Em breve síntese, a regulamentação da Aneel previu a possibilidade de rescisão amigável do CUST e revogação das outorgas sem a aplicação de penalidades para empreendedores que manifestaram o interesse até o último dia 28.07.2023, desde que cumpridos alguns requisitos como a adimplência com os encargos de uso do sistema e a desistência de eventuais ações judiciais.
Adicionalmente, a norma também prevê, para os interessados que se manifestaram até 28.07.2023, a possibilidade de regularização do cronograma de implantação do empreendimento com diferimento do pagamento do encargo de uso do sistema de transmissão, também mediante o cumprimento de determinados requisitos, como a apresentação de garantia de fiel cumprimento.
Segundo informações divulgadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os pedidos já realizados abrangem 14,7 GW, sendo 11 GW referentes ao mecanismo de anistia e 3,7 GW para a regularização das outorgas.
Embora estes mecanismos possam contribuir para a liberação de capacidade de escoamento, que poderá ser ocupada por outros interessados de acordo com a ordem cronológica das solicitações de acesso recebidas pelo ONS, ainda haverá uma série de empreendedores outorgados ou aguardando a publicação de suas outorgas que também buscarão acesso ao SIN e, pelo fato de não possuírem CUST assinado, não estarão elegíveis aos referidos mecanismos excepcionais.
Nestes termos, é imprescindível que a regulação setorial continue sendo aprimorada para definir aspectos como a competição pela margem do escoamento para estes geradores. Nesse contexto, também se acentua a necessidade de se ampliar a transparência e publicidade da atual condição do SIN, da capacidade e condições de acesso em cada ponto/região bem como dos agentes interessados na conexão em cada ponto do SIN.
Ainda em benefício da previsibilidade e para permitir que os empreendedores tenham a segurança jurídica necessária para o planejamento e realização de investimentos, é imperioso que seja definido o tratamento a ser conferido aos empreendimentos outorgados que não obtiverem acesso ao SIN ou mesmo que deixarem de implantar seus empreendimentos nos cronogramas definidos, não sendo possível olvidar da observância do princípio da isonomia, tendo em vista que parte dos geradores já tem o direito de revogar suas outorgas e rescindir os CUSTs sem a aplicação de penalidades.
Por fim, observa-se que as outorgas solicitadas a partir de março de 2021 têm o desconto nas tarifas de uso do sistema condicionada ao início de operação comercial de todas as unidades geradoras em até 48 meses contados da data de publicação de suas outorgas.
Dessa forma, torna-se ainda mais relevante que estes aspectos sejam definidos com a maior brevidade possível de modo a garantir o direito ao desconto nas tarifas de uso do fio, evitando discussões acerca de excludentes de responsabilidade que sempre trazem alguma complexidade na relação entre os agentes e o regulador.
Mariana Saragoça é advogada e sócia do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação; Frederico Accon Soares é advogado sênior e sócio do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação com ênfase no setor elétrico.