Opinião
O mito da energia assegurada
Os consumidores estão, há vários anos, pagando por uma energia que as hidrelétricas do São Francisco não são capazes de garantir
O hidrólogo Gerson Kelman publicou artigo recente em que desmistifica o conceito de energia assegurada. Esse conceito permite às geradoras terem uma receita financeira garantida, independentemente da sua energia efetivamente gerada. Como é explicado no artigo, esse conceito está assentado na hipótese de que “embora não se possa saber qual será a afluência (de água) no próximo mês a qualquer usina hidrelétrica, é possível conhecer sua distribuição de probabilidades, que poderá depender da época do ano e das afluências pretéritas.”¹
Para o autor, é evidente que essa hipótese não se sustenta no longo prazo. No entanto, ela foi e continua a ser utilizada para definir os contratos assinados pela Aneel com as geradoras de energia elétrica para ter vigência por períodos longos de tempo (20 a 35 anos). Mais ainda, ela é utilizada nos modelos computacionais utilizados pelo ONS para definir a gestão da água que flui para os reservatórios, assim como determinar o preço de curto prazo (spot) da energia ofertada pelas centrais do parque gerador como um todo.
Pois bem, o artigo informa que fazendo uso do modelo Monalisa² para as afluências recentes das centrais do Rio São Francisco, a energia assegurada dessas centrais cai de 6,4 GW médios para a 5,6 GW médios (12%). Na prática, isso significa que os consumidores estão, há vários anos, pagando R$ 1,4 bilhão por uma energia que as hidrelétricas do São Francisco não são capazes de garantir para o suprimento da demanda dos seus consumidores. Para compensar a incapacidade dessas centrais, a Aneel é forçada a contratar o suprimento de outras centrais (energia de reserva) cujos custos são pagos adicionalmente pelos consumidores.
O artigo não diz, porém é plausível conjeturar que o problema identificado na bacia do São Francisco deva ocorrer nas demais bacias hidrográficas brasileiras. Essa perspectiva sugere ser urgente a imediata revisão nos contratos de concessão de todo o parque gerador elétrico para ajustá-los à real capacidade de suprimento de energia das centrais.
Essa revisão acabará com o problema das exposições financeiras bilionárias das geradoras (famigerado problema das GSFs) e deverá redundar em significativa redução das tarifas de energia pagas pelos consumidores.
Adilson de Oliveira é professor e membro do Conselho Curador da UFRJ
¹“Energia firme da região Nordeste”, Revista Semanal Brasil Energia, 16/8/2019 ²Kelman, Kelman & Pereira, Energia Firme de Sistemas Hidrelétricos e Usos Múltiplos dos Recursos Hídricos, Revista Brasileira de Recursos Hídricos, 2004