Opinião

É preciso rever o despacho térmico

Administração dos reservatórios focada em minimizar o custo da eletricidade pode gerar lucro para empresas em períodos de bonança, mas onera a sociedade com custos do esgotamento em fases de seca

Por Adilson de Oliveira

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

A água é um bem coletivo, fonte da vida no planeta. Nossa topografia viabilizou a construção de grandes reservatórios para acumular essa dádiva da natureza com o objetivo de evitar racionamento nos períodos de estiagem. No entanto, essa situação tem sido recorrente nos últimos anos.

E a razão é simples: nossos reservatórios são administrados para minimizar o custo da eletricidade. Tal gestão gera lucros para os acionistas das empresas elétricas nos períodos de bonança hídrica, porém reparte com a sociedade os custos do esgotamento precoce dos reservatórios nos períodos de estiagem.

As mudanças climáticas têm provocado alterações significativas no regime de chuvas brasileiro. No entanto, a gestão dos reservatórios de água não sofreu alteração, apesar de restrições na oferta de água terem se tornado frequentes e da intensificação das queimadas descontroladas no Cerrado, na Amazônia e na Mata Atlântica.

O esgotamento precoce de nossos reservatórios pelo setor elétrico persiste, dado que os custos desta solução são repassados para a sociedade sob a forma de penduricalhos econômicos diversos (bandeiras tarifárias, extensão dos períodos de concessão etc.). O mais novo penduricalho é o uso das receitas fiscais obtidas com a privatização dos reservatórios da Eletrobras para ofertar benesses a grupos de interesses econômicos específicos.

Reconhecendo a gravidade da situação hídrica atual, a ANA informou que visualiza o risco de perda de governabilidade da gestão dos usos sociais da água. No entanto, o gabinete da crise (comandado pelo setor elétrico!) tomou como primeira medida o racionamento dos usos ditos não prioritários (sic) da água. Os demais usos sociais começarão a ser racionados a partir de setembro, a menos que São Pedro seja generoso conosco nos próximos meses. Equacionado (sic) o problema da água, a preocupação do comitê está voltada para a crise elétrica.

A bandeira tarifária passou para o seu nível mais elevado e a Aneel estuda elevá-lo ainda mais. Dessa forma, o setor elétrico aumenta suas receitas enquanto o consumo de energia diminui. No entanto, o preço da energia de curto prazo (PLD) não foi alterado. Dessa forma, a energia de centrais térmicas cujo custo é superior a R$ 1000/MWh continuará sendo comercializada a preços inferiores a R$ 500/MWh. Esse subsídio será cobrado em tarifas futuras nos encargos tarifários. Nas crises hídricas, os “tubarões atacam a baleia ferida”  (reservatórios de água) para atender interesses privados em detrimento dos coletivos [1].

A solução expedita para equacionar a crise hídrica é o estancamento do esgotamento dos reservatórios. Para tanto, basta que o setor elétrico opte pelo despacho pleno de suas térmicas. No entanto, essa opção não está na mesa do comitê de gestão da crise por razões técnicas, econômicas e políticas.

O ONS nos informa que nossa capacidade térmica é de 22 GW, porém apenas 80% dessa capacidade reúne condições técnico-econômicas para gerar energia. Isso porque esses 20% de capacidade inútil preferem pagar multas quando não despachados ao invés de investirem para tornar sua capacidade operacional. Assim, pagamos por centrais inúteis, que provocam o esgotamento precoce dos reservatórios, e ainda arcamos com os custos desse esgotamento. Cancelar ou revisar os contratos de concessão dessas centrais parece óbvio, porém é uma tarefa politicamente complexa.

Na realidade, o setor elétrico reluta em promover mesmo o despacho pleno das térmicas em condições operacionais. Essa opção preservaria a água dos reservatórios para seus usos nobres, porém aumentaria os encargos tarifários dos próximos anos. Seu efeito socioambiental seria benéfico, entretanto a perspectiva de tarifas elétricas crescentes seria dissuasiva da retomada da atividade econômica, especialmente nos segmentos intensivos em energia [2]. Mais um empecilho político-econômico a ser removido.

[1] Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Francisco.

[2] Nesses segmentos, estão sendo iniciadas negociações visando reduzir sua produção de bens e serviços para comercializar seus contratos de suprimento de energia em condições financeiras favoráveis, como ocorreu na crise hídrica de 2001.

Adilson Oliveira é professor Titular da Cátedra Antônio Dias Leite/Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ

Outros Artigos