Opinião

Disputa pela água entre Rio e São Paulo

Por Redação

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A UHE Jaguari, localizada nas cabeceiras do rio Paraíba do Sul, em território do Estado de São Paulo, foi objeto de algumas reportagens quando o governo de SP anunciou a pretensão de fazer uma obra para transpor 5 m3/s do reservatório de Jaguari para o reservatório Atibainha, localizado na bacia hidrográfica vizinha, com o objetivo de reforçar o abastecimento da região metropolitana de SP. Depois Jaguari voltou às manchetes quando a CESP (concessionária da UHE Jaguari) desobedeceu a uma decisão operativa do ONS por orientação do governo de São Paulo, supostamente para garantir o abastecimento da pequena cidade de Santa Izabel. Ou, mais provavelmente, para reforçar a proposição da obra Jaguari-Atibainha.


Para entender melhor o imbróglio, suponha que se pinte de vermelho uma gota de água no reservatório da UHE Jaguari. Em princípio, essa gota escoaria ao longo do vale do Paraíba do Sul e desembocaria no mar perto da cidade de Campos. No entanto, ao longo do percurso a gota poderia ser captada em uma ou mais cidades para abastecimento das populações.
Na realidade, a situação é um pouco mais complicada: a gota poderia ser utilizada também no abastecimento da região metropolitana do Rio de Janeiro, que fica fora da bacia hidrográfica. Isso porque, quando chegasse ao município fluminense de Barra do Piraí, poderia seguir o caminho natural ou ser “capturada” pelas bombas da estação elevatória de Santa Cecília, operada pela Light. Nessa possibilidade, a gota seria empurrada para cima uns 35 m, consumindo energia, e depois despencaria de uma altura de mais de 300 m, produzindo energia nas usinas da Light.


Depois de passar pelas usinas, a gota continuaria o percurso, engrossando o Rio Guandu. No caminho em direção à Baía de Sepetiba poderia ser captada pela Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETA), operada pela Cedae. Se não existisse a transposição Paraíba do Sul-Guandu, o rio Guandu seria um filete de água e a Cedae não teria como abastecer grande parte da região metropolitana do RJ.


Como a vazão utilizada na ETA é menor do que metade da vazão mínima que flui pelo Guandu, o governo de SP tem argumentado que seria possível subtrair 5 m3/s do limite inferior de 160 m3/s para a vazão afluente à elevatória de Santa Cecília. É claro que sim, isso seria possível. No entanto, há uma complicação: no percurso entre as usinas da Light e a ETA, o rio Guandu recebe alguns afluentes que atualmente trazem enorme carga de poluição, fruto da falta de saneamento na bacia de contribuição. Por causa disso, nas condições de hoje, é preciso que haja suficiente vazão no Guandu para diluir a poluição e permitir que a água seja tratável. Em outras palavras, haveria um colapso de abastecimento se a vazão do Guandu fosse menor do que uma vazão crítica, não por uma limitação qualitativa e sim pela incapacidade de tratar uma água excessivamente poluída. Qual é exatamente essa vazão crítica só quem opera a ETA seria capaz de dizer. Não deve ser pequena, porque nos últimos anos a Cedae se opôs à diminuição da vazão do rio Guandu pretendida pela Light para manutenção preventiva das estruturas hidráulicas da transposição, mesmo que por algumas horas. Essa dificuldade operacional aumenta a probabilidade – felizmente ainda pequena – de uma pane. Caso, porém, algum sinistro ocorra, faltaria água na região metropolitana do RJ por um período indefinido.


Seria possível alocar mais água para abastecimento urbano, inclusive da região metropolitana de SP, diminuindo a vazão crítica no Guandu. Bastaria, por exemplo, executar uma obra “emergencial”, concebida há 20 anos (!), para deslocar o desemboque de dois rios altamente poluídos de montante para jusante da ETA. Haveria alguma diminuição de geração nas usinas da Light, com correspondente rebatimento comercial (diminuição das energias garantidas). Mas o abastecimento de água para as populações é prioritário sobre qualquer outro uso da água, inclusive para a produção de energia elétrica.


Alternativamente, uma boa gestão dos recursos hídricos permitiria alocar o recurso escasso de forma mais inteligente. Por exemplo, como o valor agregado de cada metro cúbico utilizado na irrigação tende a ser menor que o valor agregado nos demais setores, quando numa situação em que os rios estão quase secos faz sentido oferecer incentivos econômicos aos agricultores para que optem voluntariamente pela diminuição da atividade agrícola.

A coluna de Jerson Kelman
é publicada a cada dois meses.
E-mail: jerson@kelman.com.br

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