Opinião
É possível fazer prognósticos sobre o futuro observando o passado?
Todos sabem que as vazões afluentes às usinas hidroelétricas que foram observadas no passado não ocorrerão de forma idêntica no futuro
Todos sabem que as vazões afluentes às usinas hidroelétricas que foram observadas no passado não ocorrerão de forma idêntica no futuro. Mas, se o processo estocástico “utilizado” pela Natureza for estacionário, as estatísticas – por exemplo, as médias – do futuro serão próximas às do passado. A hipótese de estacionariedade é o pilar principal sobre o qual se apoiam os modelos do Setor Elétrico para planejamento e operação do SIN. Como ninguém conhece com exatidão como a Natureza funciona, trata-se apenas de uma aproximação da realidade que pode ser usada se a janela de planejamento for medida em décadas e não em séculos ou milênios. Quando ocorrem mudanças abruptas na Natureza, porém, o passado torna-se menos relevante para o planejamento e é necessário prever o futuro considerando a mudança de clima e do uso do solo.
É difícil fazer previsões cientificamente seguras sobre os efeitos da mudança de clima porque o aumento da temperatura também incrementa a evapotranspiração e a retenção de vapor d’água na atmosfera. O aumento de concentração de vapor d’água também causa aumento de nebulosidade. E as nuvens causam simultaneamente um efeito na direção de incremento ainda maior de temperatura (aprisionam as ondas longas oriundas da Terra) e um efeito na direção contrária (refletem as ondas curtas oriundas do Sol).
Estudo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS)1 prevê a diminuição da vazão dos rios brasileiros nos próximos 30 anos, inclusive nas regiões onde haverá aumento da precipitação, devido ao aumento da evapotranspiração, por sua vez causada pelo aumento da temperatura. Segundo o estudo, a vazão média para o período de 2011 a 2040, quando comparada ao período de 1961 a 1990, diminuirá cerca de 20% na bacia do rio Paraná e de 30% na bacia do rio São Francisco. Será que já é possível observar essa tendência?
A tabela a seguir contrasta as vazões médias naturais (em m3/s) afluentes a Itaipu (rio Paraná) e Sobradinho (rio São Francisco) em dois períodos, um remoto (1931-1992, 62 anos) e outro recente (1993-2012, 20 anos)2.
Os dados de Sobradinho parecem confirmar a tendência indicada no estudo da FBDS. No entanto, os dados de Itaipu revelam exatamente o contrário. Em ambos os casos é possível rejeitar sem pestanejar a hipótese de estacionariedade. Como interpretar esses resultados e como eles devem influenciar decisões do Setor Elétrico?
Primeiro, é preciso lembrar que a série de vazões naturais não é medida diretamente e sim calculada. O cálculo depende de variáveis de difícil estimação, como é o caso da variação do estoque de água nos reservatórios de montante, das vazões turbinadas, das vazões vertidas e das retiradas de água (sobretudo para irrigação). Como o tema é de alta relevância para o Setor Elétrico, convém revisitar essas estimativas por meio da atualização das curvas cota x área x volume e cota x m3/s x MW dos principais reservatórios e usinas do SIN.
Segundo, não basta considerar as previsões de mudança climática nos cenários futuros de afluência às usinas. É preciso considerar também os efeitos da mudança de uso do solo (não incluída no estudo da FBDS), que, de acordo com estudo recente3, é ainda mais relevante. Esse estudo mostrou a possibilidade de modelar o efeito da substituição de mata nativa por plantações, reproduzindo um resultado aparentemente paradoxal: embora a precipitação na bacia ao longo de uma década mais recente (1999-2008) tenha sido inferior em 7% à observada ao longo de uma década mais antiga (1969-1978), a vazão afluente a Itaipu aumentou em 10%, em vez de diminuir.
Terceiro, diante de tanta incerteza, é preciso ser conservador. No caso presente seria prudente utilizar nos modelos do Setor a série histórica completa de Itaipu e incompleta (apenas os anos recentes) de Sobradinho. Pelo menos enquanto a Ciência não tiver respostas mais firmes para tantas dúvidas.
A coluna de Jerson Kelman
é publicada a cada dois meses
E-mail: jerson@kelman.com.br
1 SALATI, Eneas (Coord.). Economia das mudanças climáticas no Brasil: estimativas da oferta de recursos hídricos no Brasil em cenários futuros de clima (2015-2100). FBDS, jul. 2010.
2 http://www.ons.org.br/operacao/vazoes_naturais.aspx
3 LIVINO, Angela; BRISCOE, John; LEE, Eunjee; MOORCROFT, Paul; KELMAN, Jerson. 2014. Climate change as a challenge to decision-makers in the management of the Brazilian hydropower Systems. The International Journal on Hydropower and Dams. 21(4):57-61.