Opinião
Jerson Kelman: O Complexo de Lages
A coluna bimestral de Jerson Kelman
Na primeira década do século 20 ocorria grave epidemia de malária em diversas regiões do país. São João Marcos, no Rio de Janeiro, era um dos municípios mais severamente atingidos. A cidade se localizava a montante do complexo constituído pela barragem e reservatório de Lages e a usina de Fontes, que havia sido inaugurado pela Light em 1908. Dois anos depois, em abril de 1910, o Dr. Francisco Tavares, fiscal do governo do estado do Rio, dirigiu um ofício à empresa nos seguintes termos1:
“Tendo o Governo do Estado deliberado a organização de uma comissão médica com o fim de cuidar do saneamento das localidades flageladas pela malária, comissão que nesta data inicia os serviços de profilaxia em Passa Três e São João Marcos, e tornando-se necessária (...) a ação conjunta da Light, (...) convido-o a mandar proceder, nos pontos alagadiços, (...) a uma larga devastação das matas, incineração das mesmas, procurando-se (...) destruir todas as substâncias orgânicas por meio de solução de cal virgem (...). Além dos deveres de humanidade, essas e outras medidas serão de grande monta, por determinar a valorização dos terrenos que a Companhia possui e poderão, depois de saneados, transformarem-se em centros de produção agrícola.”
Passados pouco mais de cem anos, constata-se que no setor de saúde pública ocorreram mudanças, ma non troppo: a malária foi substituída pela dengue. Diferente do que aconteceu no setor ambiental, no qual tudo mudou. Não se imagina nos dias de hoje que alguma autoridade determine a uma concessionária que solucione grave epidemia por meio da devastação das matas e da utilização das terras para produção agrícola.
Para o bem ou para o mal, a Light não seguiu a recomendação ao pé da letra e manteve as condições naturais da bacia de drenagem contribuinte ao reservatório. Essa área constitui hoje importante parcela do que restou de floresta nativa da Mata Atlântica. Além disso, a conservação da mata permitiu que se mantivesse razoavelmente pura a água afluente ao reservatório.
Esse último fato foi determinante para que se encontrasse, no reservatório de Lages, a solução para o crônico problema de abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro. Desde o início do século 19, isso vinha afligindo sucessivas gerações de cariocas. Imprensada entre o mar e a montanha, a cidade não tem rios de grande porte a lhe cortar o território. Por uma imposição geográfica, depende de obras de engenharia que permitam a captação e a condução da água originada em mananciais distantes. Foi o que se fez no fim da década de 30 do século 20, quando o Rio de Janeiro vivia, mais uma vez, o drama da falta de água.
Decidiu-se ampliar o reservatório de Lages e conduzir a água por meio de uma adutora a partir do canal de fuga da usina de Fontes. Com maior volume útil, seria possível aumentar a vazão regularizada. No caminho da água, a maior vazão regularizada permitiria, como um bônus extra, o aumento de produção de eletricidade.
O estudo de remanso mostrou que São João Marcos, situada a montante do reservatório, seria alagada. Diante dessa constatação, o Governo Getúlio Vargas decidiu pela remoção total da população. Como na época o tratamento químico para abastecimento era malvisto pela população, é razoável supor que a hipótese de remoção parcial tenha sido descartada devido ao temor de que ocorresse a contaminação da água afluente ao reservatório pelo esgoto efluente de São Marcos.
No início dos anos 50, foi inaugurada a usina Nilo Peçanha e a associada transposição parcial do rio Paraíba do Sul (dois terços da vazão média) para a bacia do rio Guandu. Depois de passar pelas turbinas, a água da transposição chega a uma das maiores estações de tratamento de água do mundo.
Durante seis décadas, as estruturas de transposição têm funcionado satisfatoriamente. Nos primeiros anos do período, uma eventual falha implicaria o comprometimento tanto de abastecimento de água quanto de eletricidade para a região metropolitana. Em anos mais recentes, com a gradual expansão do Sistema Interligado Nacional, cessou a dependência da energia gerada localmente.
Hoje o Rio recebe energia gerada a milhares de quilômetros, e um eventual acidente em alguma estrutura hidráulica da transposição não causaria desabastecimento energético. Mas causaria, sim, desabastecimento de água. Trata-se de evento de baixa probabilidade. Entretanto, tendo em conta a gravidade das consequências, na hipótese de ocorrência do sinistro, é importante que sejam identificadas alternativas para mitigar a vulnerabilidade hídrica.